Já ouviu falar das aventuras de Telêmaco e seu companheiro Mentor? Tem alguma ideia sobre o que acontece no País das Monas? O que acha dos problemas de Hemirena?
Se você vivesse no Rio de Janeiro de duzentos anos atrás, talvez soubesse comentar tais assuntos – desde que fosse leitor de romances, um gênero cada vez mais apreciado na virada do século XVIII para o XIX.
Hoje, para se saber quais são as obras preferidas dos leitores, basta abrir um jornal ou uma revista e consultar as listas publicadas sob o título de “Mais vendidos”. No passado não havia nada disso, mas é possível conhecer a preferência daqueles leitores consultando os pedidos de autorização para circulação de livros submetidos à censura.
Como até 1808 era proibido imprimir no Brasil, quem quisesse ter um livro deveria importá-lo de Portugal, obtendo, previamente, uma autorização da censura. E mesmo depois da vinda da família real, com a instalação da Impressão Régia, a importação de livros continuou forte, pois a produção local era bastante reduzida, especialmente no campo da ficção.
As importações de livros indicam que a obra preferida durante todo o período colonial foi o romance As aventuras de Telêmaco, escrito em 1699 por François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715). A narrativa dava prosseguimento a um episódio da Odisseia – clássico grego de Homero que conta as tentativas de Ulisses de voltar para casa depois da Guerra de Troia. Fénelon concentra-se na história de Telêmaco, filho de Ulisses, que sai de Ítaca para procurar o pai. Ao longo da viagem, ele passa por várias regiões, encontra os principais povos da Antiguidade e conhece diversas formas de governo e de exercício da autoridade. Sempre acompanhado por Mentor, que se apresenta como um antigo amigo de Ulisses, mas, na verdade, é Minerva, a deusa da sabedoria, oculta sob esse disfarce.
Curioso é que Fénelon não pretendia publicar suas histórias em livro. Seu objetivo era colocar um pouco de cultura antiga e algumas ideias de moral e justiça na cabeça do neto de Luís XIV, de quem era preceptor. Dizem que o provável herdeiro do trono francês não era um estudante muito disciplinado. Ao contar-lhe aquelas aventuras, Fénelon esperava que o rapaz se identificasse com Telêmaco, aprendesse História, Geografia e Mitologia clássicas e, sobretudo, que formasse ideias sobre o bom modo de governar.
Mas a história foi publicada e em pouco tempo conquistou o mundo. Fez tanto sucesso que acabou imitada por diversos autores, inclusive em língua portuguesa. No Brasil, a mais apreciada imitação das aventuras de Telêmaco foi escrita pelo padre Teodoro de Almeida (1722-1804), sob o chamativo título O feliz independente do mundo e da fortuna ou Arte de viver contente em quaisquer trabalhos da vida (1779). O padre diz, explicitamente, que tomou “por modelo” o livro de Fénelon para criar a história de Vladisláo, rei da Polônia no século XIII, cujas aventuras (e, principalmente, desventuras) o transformaram num modelo de virtude. Assim como Mentor instruía e aconselhava o jovem Telêmaco, Vladisláo não perde uma oportunidade para discursar em defesa de princípios cristãos. O excesso de pregações fez com que o livro ganhasse o apelido de O feliz impertinente.
Outra imitação bem-sucedida do livro de Fénelon foi produzida por uma autora nascida no Brasil. Em Aventuras de Diófanes (1752), Teresa Margarida da Silva e Orta acompanha o protagonista, rei de Tebas, sua esposa Climinéia e seus filhos Almeno e Hemirena. Os problemas da família começam quando uma tempestade dispersa os navios em que viajam rumo à ilha de Delos, onde seria realizado o casamento de Hemirena com o príncipe Arnesto. Eles são capturados e vendidos como escravos, passando pelas mais variadas dificuldades. Enquanto narra as aventuras das personagens, a autora informa sobre a Antiguidade clássica e dá inúmeros conselhos virtuosos sobre comportamentos cotidianos e sobre o exercício do poder.
Os leitores pareciam não se cansar desse tipo de narrativa, mas apreciavam também outras viagens, mais alegres e irônicas.
É o caso das Viagens de Henrique Wanton às terras incógnitas austrais e ao País das Monas (1749). Escrito pelo italiano Zacaria Seriman (1709-1784), o romance conta a história de Henrique e seu amigo Roberto, que, após um naufrágio, chegam ao País das Monas. O lugar é habitado por macacos capazes de falar, andam vestidos, moram em casas e são muito mais virtuosos do que qualquer europeu. Uma das macacas apaixona-se por Roberto, e em pouco mais de um mês ensina aos amigos a língua do País das Monas.
Para difundir os conhecimentos ali adquiridos, o livro traz no final um “Dicionário das ciências e artes de corte”, em que se desvenda o verdadeiro sentido de palavras como:
ADULAÇÃO: Umas pílulas de formosíssima configuração por fora; porém, interiormente, de uma confecção do mais ativo veneno: receitam-se comumente para pessoas de alto caráter e tomam-se pelo ouvido.
SINCERIDADE: Arma proibida; quem a usa está exposto a grandes penas: já é muito rara.
O tema da virtude permanece, mas muda o tom: em vez de dar conselhos e fazer pregações morais, o autor aponta os defeitos das sociedades europeias, ampliando a crítica pelo elogio ao comportamento dos macacos.
Pelo mesmo caminho seguia outro livro de grande sucesso: O piolho viajante (1802), do português António Manuel Policarpo da Silva. Em vez dos macacos, aqui quem fala é um piolho, que deixou registradas suas aventuras “em língua piolha”, traduzida com muita dificuldade para o português, por ser uma “língua que nem por microscópio se vê e que não tem dicionário”. Como todo bom piolho, o narrador passa de cabeça em cabeça, e assim é capaz de contar todos os podres da sociedade da época. Suas revelações servem de pretexto para críticas e tiradas humorísticas, que têm por finalidade moralizar, ou como explica o piolho: “uma obra pode ser cheia de galantarias e extravagâncias que provoquem o riso e, ao mesmo tempo, ser cheia de lição”.
Apesar de todas essas boas intenções, os romances eram muito malvistos pelos eruditos da época. Eles temiam que aquelas leituras tivessem efeito contrário ao alardeado pelos autores, levando à corrupção dos costumes, pois os enredos tinham que mostrar comportamentos inadequados para poder criticá-los. Muitos achavam que os leitores poderiam prestar mais atenção às situações imorais do que à recriminação a elas.
Outros se opunham às narrativas em prosa por elas não fazerem parte das poéticas e retóricas – livros que determinavam a forma como deveriam ser compostos os textos e estabeleciam quais tinham sido as melhores realizações em cada um dos gêneros. Em nenhum desses livros havia um comentário sequer sobre romance e muito menos a indicação das melhores obras. Por tudo isso, as pessoas mais cultas tinham os romances em baixa conta, concluindo que eles não podiam ser escritos de valor. Seus leitores, por sua vez, eram considerados gente ignorante, ávida por emoções fortes e diversão fácil.
Como se não bastasse, alguns dos romances mais apreciados foram escritos por mulheres, tidas à época como seres inferiores. Além do sucesso das Aventuras de Diófanes, de Teresa Margarida da Silva Orta, foram muito lidas obras como Carolina de Litchfield (1786), de Isabelle de Montolieu, e Magasin d’enfants, de Pauline de Montmorin, publicada em português com o título de Tesouro de meninas (1757).
Felizmente, os leitores não se preocupavam com esse tipo de recriminação e continuavam importando, comprando e, sobretudo, lendo muito romance.
MÁRCIA ABREU é professora da Unicamp e autora de Os caminhos dos livros (ALB & Mercado de Letras. (Fapesp, 2003).
Saiba Mais - Bibliografia
VASCONCELOS, Sandra G. T. A Formação do Romance Inglês. São Paulo: Hucitec, 2008.
Saiba Mais - Internet
www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br
Os primeiros da cabeceira
Márcia Abreu