Os sem-igreja

Claudia Bojunga

  • As filhas de Dodô poderão se casar no mesmo local que seu pai. Durante quase quatro décadas, isso era impensável: a capela de Santana do Morro, única da comunidade do Gogô, um pequeno bairro de Mariana (MG), foi desmontada no início dos anos 1970. Agora, está prestes a ser reconstruída, com parte de seu acervo original. Há oito anos, descobriu-se que os bancos, forros,
    mármores, portas, cantarias e até telhas da construção haviam sido doadas, com autorização do arcebispo local, para a empreiteira Mendes Junior. Foi aí que começou a luta da comunidade para o retorno das peças ao local de onde nunca deveriam ter saído.

    Graças à mobilização dos moradores, com auxílio do Ministério Público, o material foi devolvido à cidade e só aguarda a conclusão do projeto de nova igreja, que ficará no mesmo lugar do antigo templo.

    Tudo começou quando o então arcebispo de Mariana, Dom Oscar de Oliveira, autorizou a destruição da capela alegando que ela se encontrava em precário estado de conservação. A maior parte do acervo foi para a coleção particular de um dos donos da Mendes Junior, Arthur Vale Mendes,já falecido. O empresário, conhecido como Tuca, usou as peças para ornamentar uma nova capela erguida na sede da companhia em 1977, no bairro de Estoril, em Belo Horizonte.

    Dom Oscar morreu em 1988, mas monsenhor Flávio Rodrigues, que na época era tesoureiro da cúria de Mariana, justifica a atitude do antigo arcebispo. “Sei que foi eivado de uma intenção muito elevada que ele consentiu que as peças fossem levadas para outro local. Não condeno. Foi para salvar um patrimônio que estava ameaçado. Certamente ele pensou que a Mendes Junior, com o poder que tem, iria preservá-las. Não acho que tenha sido errado”, argumenta. Monsenhor Flávio, que hoje é diretor do arquivo eclesiástico de Mariana,ressalta ainda que o material da capela “foi cedido, não doado” e que “algumas imagens salvas por Dom Oscar estão no Museu de Artes Sacras de Mariana”.

    Segundo Marcos Paulo de Souza Miranda,coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais,o que Dom Oscar fez é vedado até pelo Direito Canônico. “É proibido alienar peças de igreja,exceto com autorização do Papa”. Além disso, a medida vai contra o princípio de vinculação dos bens culturais ao seu local de origem. Miranda explica: as peças “só fazem sentido dentro do ambiente em que foram concebidas. A retirada só é permitida por motivos técnicos como uma inundação. É a mesma coisa que tirar o Pão de Açúcar e colocar em Belo Horizonte”.

    É bom lembrar que esse tipo de prática era bastante comum na época. O promotor observa que a consciência do valor do patrimônio histórico vem se transformando nas últimas décadas. “A sociedade não aceita o que era cometido de maneira rotineira há 30 anos”, diz Miranda. A indignação de antigos moradores do Gogô, mostra a importância daqueles bens culturais para a comunidade: “Quando falam doou, é na verdade uma maneira simpática de dizer: roubou. É um patrimônio que é do povo”, diz Salvador Alves de Freitas, o Dodô, pedreiro e encanador.

    Construída em 1712 no alto de um morro, a capela era isolada do centro urbano. Mas o acesso complicado — feito por uma trilha, a pé ou a cavalo, durante até 40 minutos — não impedia que fosse bastante frequentada pelos moradores. A comunidade é composta em sua maioria por descendentes de escravos da mineração e chegou a contar com 20 mil pessoas no século XVIII. Todos os anos, celebrava-se a festa da padroeira Sant’ana, com direito a procissão e banda de música. No cemitério em volta da capela, foram enterrados os antepassados dos habitantes. Durante as comemorações religiosas, a igreja ficava tão lotada que uma parte da multidão tinha que ficar do lado de fora. José Cesário de Moraes, aposentado de 62 anos (conhecido como Chinês), foi batizado, crismado e fez primeira comunhão na capela. “Para nós, a igreja é o símbolo do Morro de Santana. Tiraram até as pedras que estavam no chão, não dá para entender uma coisa dessas”, lamenta.

    Dodô casou-se na igreja, e ainda tem disposição de sobra para subir o morro. A diferença é que agora só encontra as ruínas que ficaram no antigo palco de tantas celebrações. “A igreja era uma relíquia do povo, de valor sentimental. Só quem a viu, como nós, pode entender o que significava. Sem ela, para assistir a uma missa as pessoas tinham que caminhar até a Sé, que fica a uns cinco quilômetros daqui. O pessoal foi deixando ir à igreja, porque gastava um dia inteiro caminhando, carregando criança no colo. Aí desanimava”, relata.

    A movimentação da comunidade em relação ao caso começou depois da primeira denúncia a respeito, publicada no jornal local O Espeto, fundado em 1928. O diretor do periódico, Leandro Henrique dos Santos, organizou em 2004 uma visita à capital mineira: junto com outros antigos moradores, Chinês e Dodô serviram de testemunhas na identificação das partes retiradas da Igreja de Santana do Morro. A capela que as abrigava não pertencia mais à Mendes Junior, mas à Universidade de Belo Horizonte (Uni-BH).

    A associação de moradores do bairro fez um abaixo-assinado com mais de 150 assinaturas de residentes da localidade. O documento foi levado ao Ministério Público e o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda entrou em cena. Laudos técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ajudaram a comprovar a origem das peças. Miranda acompanhou o grupo em mais uma ida à Belo Horizonte, mas a situação havia mudado de novo: a pequena igreja havia sido completamente desmanchada e as peças doadas para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde estavam armazenadas em um depósito. Mais uma vez, os moradores atuaram como “peritos”: no galpão, tiveram certeza que os bancos, forros e lustres de madeira eram aqueles que tanto conheciam.

    Para chegar a um acordo entre todas as partes envolvidas, foi instaurado um procedimento no Ministério Público. O objetivo não era investigar os responsáveis pela destruição, até porque, se algum crime pudesse ser comprovado, ele já estaria prescrito. Para o representante da Mendes Junior no acordo, José Lourenço Oliveira, o caso está encerrado: “A empresa nunca teve nada contra a devolução do material. Não há muito que falar”.

    A transferência do acervo foi feita em março de 2008, a cargo da Prefeitura de Mariana. “Demos o apoio logístico, disponibilizando o transporte das peças em caminhões-baú”, conta Marcílio Queiróz, diretor de Turismo do município. O material foi recebido com grande festa em Mariana e está guardado a sete chaves. A expectativa era que a prefeitura entregasse a nova construção até julho do ano passado, mas “razões burocráticas” adiaram a derradeira festa.

    O projeto para elaboração da nova capela foi encomendado, mas o trabalho é complexo: depois de tantas transferências, o acervo hoje conta com materiais mais recentes, que não necessariamente faziam parte da Igreja de Santana do Morro. “Fizemos um levantamento topográfico e tiramos fotos da área onde ela vai ser erguida. Depois temos que separar do material o que exatamente pertenceu à igreja original, para então procurarmos um conceito para a construção”, detalha Altino Caldeira, arquiteto da equipe. Cerca de 20 profissionais estão envolvidos no projeto, de técnicos hidráulicos a historiadores.

    Quando a capela estiver pronta, no local será colocada uma placa contando toda a história da igreja e o longo percurso até a volta das peças. As informações preservam a memória do bairro e ainda servirão de exemplo para que outros casos como esse sejam evitados. Além disso, deixarão claro para o público visitante que não se trata de uma falsificação histórica. Afinal, é impossível reconstruir uma igreja do século XVIII. “A capela será uma releitura da igreja antiga. Vai trazer essa lembrança com o número máximo possível de peças originais”, observa Reinaldo Morais, secretário de Cultura de Mariana.

    Hoje o sítio em que a igreja ficava está tombado pelo município, o que em tese garante a preservação da futura capela e evita que ocorra outra confusão entre o patrimônio público e o privado. Enquanto a nova/velha capela não chega, os moradores do Gogô aguardam ansiosos e contam incansavelmente sua história, para que ela jamais seja esquecida.

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