Ousadia e transgressão

Michelle Trugilho Assumpção

  • Salvador, na Bahia, em gravura do século XVII. No final do século anterior, agentes inquisitoriais, investigaram mulheres que decidiram se casar novamente e recomeçar suas vidas.

    Antônia de Barros já era uma senhora de 70 anos quando compareceu à Mesa Inquisitorial na Bahia. Admitiu ter cometido o delito da bigamia... cerca de 30 anos antes. 

    A confissão de Antônia foi feita durante a primeira visitação inquisitorial ao Brasil, realizada entre os anos de 1591 e 1595. Na ocasião, diversas pessoas delataram ou confessaram delitos da alçada da Inquisição, entre eles a bigamia. Seus praticantes eram vistos como grandes “suspeitos na fé”. Afinal, ao se casarem novamente estando vivo o primeiro cônjuge, eles estavam, aos olhos da Inquisição, ignorando o fato de o matrimônio ser um sacramento que não podia ser dissolvido, apenas em caso de morte.

    A bigamia foi praticada em todo o vasto Império português, principalmente por homens pobres, mais atingidos pelo ir e vir da colonização. Era comum contar com a distância para a realização e o encobrimento do delito. As mulheres, porém, também estiveram entre os praticantes desta que era considerada tanto uma transgressão religiosa quanto social. A maioria o fazia depois de ter sido abandonada pelo primeiro marido. Mas também havia aquelas que por diferentes razões deixavam seus lares e, mesmo cientes de que não eram viúvas, casavam-se novamente.

    Ao cometer a bigamia, muitas mulheres buscavam apagar o passado e recomeçar suas vidas. Foi o que aconteceu com Antônia de Barros. Ela já havia sido condenada pela Justiça Secular, em Portugal, a cumprir cinco anos de degredo no Brasil, tendo sido acusada de adultério pelo próprio marido. Veio, portanto, forçada para estas terras, mas trouxe consigo o amante, Henrique Barbas, com quem se casou em Porto Seguro. Para isso, conseguiram testemunhas falsas que juraram que ele era solteiro e ela, viúva.

    Antônia e Henrique viveram como casados por aproximadamente 15 anos. Ela, porém, acabou fugindo de casa devido ao fato de o marido lhe “dar açoites e pancadas e muito má vida”, como relatou ao visitador Heitor Furtado de Mendonça. Além de ter confessado a prática da bigamia, Antônia foi delatada pela mesma transgressão e acabou processada pela Inquisição. No entanto, como fez sua confissão no “tempo da graça” (período de até 30 dias para apresentação espontânea perante a autoridade inquisitorial) e fez “boa confissão”, recebeu apenas punições brandas: teve que abjurar de leve suspeita na fé na própria Mesa Inquisitorial e realizar penitências espirituais.

    Ao trair o marido em Portugal, Antônia havia arriscado a própria vida. Afinal, a legislação da época permitia que ele matasse tanto a esposa como o amante. Como se não bastasse, trouxe o amásio quando veio degredada para o Brasil. E, para piorar, fingiu-se viúva e casou-se com ele. Antônia parecia estar realmente disposta a reescrever sua história. E para que esta não tivesse um triste fim, desafiou também a autoridade do segundo marido, fugindo de casa por não suportar mais os maus-tratos sofridos.

    O caso de Antônia nos mostra a forma cruel com que diversas mulheres eram tratadas pelos companheiros. Mas muitas reagiam ao sofrimento e às pressões masculinas. Rompiam uniões indesejáveis, fugiam e, às vezes, até contraíam novos laços matrimoniais, fingindo-se solteiras ou viúvas.

    A trajetória de Catarina Morena é outro exemplo de ousadia feminina resgatado da documentação inquisitorial. Castelhana, filha de lavradores, ela havia se casado na Espanha com o estalajadeiro Francisco Durán. Viveu com ele por cerca de seis meses, depois dos quais decidiu fugir para o Brasil, já que, segundo ela, o marido a tratava mal e estava sempre embriagado. Mas, tal como havia acontecido com Antônia de Barros, a viagem de Catarina não foi solitária. Ela veio acompanhada do amante Francisco de Burgos, com quem passou a viver nestas terras (o local exato não consta na documentação).

    Passado algum tempo, Catarina abandonou Francisco e foi para Pernambuco. Lá chegando, elaborou uma carta falsa, que mostrou para muitas pessoas. O documento vinha supostamente de Málaga, na Espanha, e informava que seu marido havia morrido. Tida como viúva, Catarina conseguiu um novo pretendente, casando-se, assim, com o português Antônio Jorge.­­­

    O segundo casamento de Catarina durou cerca de 15 meses. Depois disso, alegando peso na consciência, ela decidiu se confessar a um padre que, escandalizado, recomendou a Antônio Jorge que se afastasse dela, pois seu casamento não era legítimo. Catarina não viu alternativa a não ser mudar-se novamente, desta vez para a Bahia. Afinal, depois de fugir do marido que a maltratava, teve que se separar do homem que escolheu para reconstruir sua vida. Diante da Mesa da Inquisição, confessou-se no período da graça e também recebeu penas leves. Mas foi advertida para não voltar ao lugar onde vivia Antônio Jorge.

    Marta Fernandes não contou com a mesma tolerância do visitador. Mulher parda, filha de um lavrador com sua escrava africana, foi denunciada duas vezes pela prática da bigamia durante a mesma visitação, além de ter feito sua confissão no período da graça. Ela havia se casado na Ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, com Fernão Gonçalves, “trabalhador da erva pastel” (anil) e cometeu bigamia ao se casar com um mancebo em Pernambuco.

    A análise do processo movido contra Marta nos revela sua ousadia e criatividade. Ela chegou a montar quatro versões diferentes a fim de se livrar da culpa de bigamia e dos castigos inquisitoriais. Sua confissão em muito se diferenciava das denúncias apuradas contra ela, e o promotor concluiu que “usou a dita Marta Fernandes de simulação e malícia na confissão que fez nesta mesa do Santo Ofício posto que fosse dentro do período da graça”. Entre as versões criadas por Marta estava a de que seu primeiro casamento havia sido celebrado de forma irregular. Marta enumerou uma série de exigências que não teriam sido cumpridas durante a celebração. Isto tornaria sua primeira união inválida. O conhecimento de tais exigências só foi possível porque ela era amásia do padre Francisco Fernandes, de quem também era escrava e com quem teve filhos antes e durante o casamento. Segundo um dos seus depoimentos, o clérigo a teria forçado a se casar com Fernão Gonçalves para que nenhuma acusação recaísse sobre ele.

    Em sua última versão, Marta admitiu que havia se casado com Fernão na Igreja, seguindo todas as determinações católicas. Acrescentou que o marido a tratou bem por apenas seis meses. Depois disso, ele teria começado a se ausentar e a se envolver em furtos, chegando a ser preso. Nessa época, ela teria ferido o rosto de uma moça com um vidro por causa dos ciúmes que sentia do seu senhor e amante. Por isso, fugiu para o Brasil e conseguiu testemunhas falsas que juraram que ela era solteira. Marta pôde, assim, esconder o passado e refazer sua vida, casando-se com o marinheiro André Duarte. Disse, ainda, que jamais revelou a verdade por temer que a afastassem do segundo marido, com o qual parece ter se unido por vontade e por quem parecia nutrir bons sentimentos.

    Convencido, enfim, da história contada por Marta, mas não da sua inocência, o visitador estabeleceu a sentença final. Marta foi condenada a ir ao Auto Público nas condições humilhantes que eram de praxe: descalça, cingida com corda e vela acesa na mão. Lá deveria fazer abjuração de leve suspeita na fé e, em seguida, cumprir penas espirituais. Além disso, deveria ser açoitada publicamente e degredada para o Reino de Angola. Tais penas foram acrescidas de outra que talvez tenha sido a mais dolorosa: nunca mais regressar ao lugar em que estivesse André Duarte, seu segundo e não legítimo marido.

    As histórias de Catarina Morena, Antônia Barbosa e Marta Fernandes, embora sejam mais exceção do que regra, enriquece-nos com audaciosas demonstrações da atuação feminina no Brasil colonial. Elas nos revelam que diferentes mulheres, quando insatisfeitas, agiam por contra própria a fim de modificar seus destinos. Se preciso fosse, transgrediam as normas impostas e desafiavam não só os maridos, mas também as principais autoridades da época, movidas pelo forte desejo e pela invejável coragem de reescreverem suas trajetórias.

     

    Michelle Trugilho Assumpção é autora da dissertação “Transgressores do Matrimônio: Bigamia e Inquisição no Brasil Colonial”, (Uerj, 2010).

     

    SAIBA MAIS

    PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

    SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp, 1984.

    VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

    VAINFAS, Ronaldo (org). Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.