Outdoor centenário

Beatriz Valladão Thiesen

  • Um elefante, o deus Mercúrio, crianças, um globo terrestre, sátiros, bodes. Tudo junto numa propaganda de cerveja. Se essa combinação parece estranha hoje, imagine um século atrás. Pois este anúncio existiu, e ainda está de pé para quem quiser ver, na forma de uma fachada de prédio: a Cervejaria Bopp & Irmãos, em Porto Alegre.

    Erguida em 1911, a construção foi o ápice da atividade que Carlos Bopp abraçara trinta anos antes. Diz a lenda que este funileiro descendente de alemães recebeu, em 1881, a encomenda de uma caldeira, mas o cliente jamais foi retirar a peça. A esposa de Carlos, então, sugeriu que ele reduzisse o prejuízo utilizando a caldeira para fazer cerveja. A mulher assumiu a produção, e nos fins de semana o marido colocava as garrafas num carrinho de mão para vender na vizinhança. O sucesso da receita caseira foi tão grande que em 1907 a cervejaria já era uma das mais importantes do país. Dois anos depois, os três filhos do funileiro deram início à Bopp & Irmãos.

    A trajetória da família Bopp sintetiza os caminhos da industrialização no sul do país. A origem dessa transformação econômica na região está ligada ao processo de imigração iniciado em 1824, com a chegada dos primeiros colonos alemães ao Rio Grande do Sul. Comerciantes enriqueceram controlando a venda de artigos importados dos grandes centros, e com o capital acumulado fizeram surgir os primeiros estabelecimentos industriais, favorecidos pela formação de um mercado consumidor e pela política conhecida como Encilhamento (1889-1891), que liberou farto crédito para investimentos na produção.

    As indústrias costumavam nascer pequenas, normalmente de caráter familiar. Os prédios onde funcionavam as fábricas não se diferenciavam das construções comerciais ou mesmo residenciais. Na passagem para o século XX, a introdução de tecnologia e a aquisição crescente de máquinas alteraram o espaço fabril. E a arquitetura dos edifícios industriais passou a incorporar uma carga simbólica importante. Nascia uma nova elite, composta de comerciantes, banqueiros e industriais de origem europeia (imigrantes alemães, italianos e portugueses ou seus filhos), que utilizaram a arquitetura de seus empreendimentos para afirmar sua posição social. A fábrica era considerada sinônimo de progresso, riqueza e civilização. As formas arquitetônicas desse novo espaço urbano correspondiam aos ideais burgueses de progresso e civilização. Significavam também a superação do passado colonial, que a burguesia emergente desejava esquecer, espelhando-se na cultura europeia.

    Foi nesse ambiente que os irmãos Bopp decidiram construir o maior prédio de cimento armado do Brasil. Imponente e com uma produção impressionante para a época – 30 mil garrafas por dia –, a nova fábrica possuía um dínamo que fornecia toda a luz do edifício, um elevador de 15 metros de altura, hidráulica própria (com água captada do Rio Guaíba) e salas de análises químicas. Todo o maquinário era importado da Alemanha.

    Mas o prédio ia além da funcionalidade: sua decoração externa não foi considerada mero detalhe, tanto que consumiu 10% do custo total da construção. A fachada funcionava como um gigantesco outdoor, que, por um lado, incentivava o consumo de cerveja e, por outro, afirmava os valores daquela nova elite.

    O projeto da fábrica – todo elaborado por imigrantes alemães ou descendentes – inspirou-se na arquitetura clássica, com formas ligadas à antiguidade grega e romana. As janelas extravagantes fazem alusão ao estilo art nouveau, muito influente na época, com novos materiais, como o vidro, o ferro e o cimento armado. Em contraste com esse estilo sóbrio, a fachada oferece um enorme conjunto de esculturas irônicas e brincalhonas.

    No topo do prédio principal sobressai um elefante. O patriarca Carlos Bopp tinha predileção pelo animal: gostava de dizer que quem tomava cerveja ficava forte como aquele paquiderme, uma associação comum em vários lugares do mundo. Ainda hoje há cervejas chamadas Elefante, assim como fez Bopp ao batizar uma de suas marcas. Em uma enciclopédia científica alemã, publicada em 1875 por Julius Hoffmann, consta que o elefante adora beber vinho e aguardente de arroz, e que ingere enormes quantidades de água, chegando a 30 baldes por dia no verão. Esta fama de beberrão pode ter pesado na hora da escolha do símbolo da cerveja, da fábrica e da própria família Bopp. Na literatura ocidental, o elefante costuma simbolizar força, resistência, prosperidade, longevidade, sabedoria e boa memória.

    A outra figura de maior destaque na fachada é o deus romano Mercúrio (equivalente a Hermes na mitologia grega), também ele uma marca de cerveja dos Bopp. Considerado o símbolo da inteligência industrial e do comércio, ele traz na cabeça um chapéu alado e segura um caduceu (bastão que usa para fazer as pessoas dormirem ou acordarem), em torno do qual há duas serpentes enroscadas. Duas representações importantes figuram junto a Mercúrio: o galo e o bode. Presente por todo o prédio, este último simboliza a força vital da libido e a fecundidade. Era o animal consagrado a Baco (para os romanos) ou Dionísio (para os gregos), deus da embriaguez, do êxtase e da desordem. O galo, por sua vez, era sacrificado ao filho do deus grego Apolo, desempenhando o papel de psicopompo (aquele que conduz a alma do morto até o outro mundo). Por isso é também associado a Mercúrio, deus que transita livremente pelos três níveis do cosmo: inferno, terra e céu.

    Provavelmente, Mercúrio foi escolhido por simbolizar o potencial comercial da empresa. Mensagem reforçada pela escultura que o acompanha: um globo terrestre, elemento muito usado para evocar o poder mundial do comércio. No entanto, a forma como o deus é apresentado – com jeito displicente e debochado, aparentemente inebriado pelo efeito do álcool – remete mais à sua astúcia e malícia do que à inteligência industrial e comercial.

    A sugestão dessas duas ideias – o mundano e o elevado, a razão e a embriaguez – é recorrente na fachada da fábrica. E não sem motivo: tradicionalmente, a embriaguez é considerada um estado semelhante ao êxtase, em que profetas e sacerdotes alcançam a sabedoria divina. Isso explica a presença em torno de Mercúrio tanto de uma coruja (que possui o dom da clarividência e da sabedoria) como de duas efígies em forma de cabeças, com lábios inchados e aspecto de quem já bebeu bastante, coroadas por espigas de cevada e lúpulo. Entre elas surgem talheres, que, associados às demais figuras, remetem a festins e fartura. Esses elementos lembram imediatamente Dionísio, deus que concilia aquela aparente contradição: símbolo do êxtase e da embriaguez, ele representa também o esforço humano de espiritualização. Romper inibições e repressões é o caminho da liberdade. O transbordamento de sensualidade e a liberação do irracional seriam formas desajeitadas dos homens de procurar algo de sobre-humano. Ou seja, de se aproximarem do divino.

    As esculturas na parte de baixo do prédio central são radicalmente diferentes das superiores. Seus motivos vêm da tradição nórdica e, ao contrário das ligadas ao mundo clássico, não são feitas originalmente em pedra clara, mas em gesso ou madeira pintados. Trata-se de uma vertente folclórica iniciada no Romantismo, no século XIX, e que floresceu como decoração das bierstuben, as tabernas da Alemanha. Adornam a porta de entrada dois barris, de onde sai lúpulo e jorra espuma abundante. Nas laterais, relevos de garrafas. Logo abaixo, dois homens, aparentemente alemães da região de Munique, têm nas mãos canecos de cerveja.

    Na torre do segundo prédio da Cervejaria, onde a bebida era de fato fabricada, figuras humanas dispostas em pares, com ventres salientes e seios pendentes, erguem um brinde apoiadas em barris. Um pouco abaixo, uma soberba figura também parece brindar com as pessoas que passam na rua: trata-se da representação de um grande bebedor de cerveja, Gambrinus. Do pátio frontal parte uma escadaria que conduz à imensa porta de entrada, em cujos capitéis se encontram duas crianças: a da direita segura uma chave e a da esquerda, um caneco de cerveja. Essas criaturas estão em posição de guarda, como quem protege o lugar. Sobre elas gargalha a figura ameaçadora de um sátiro, ser demoníaco, de grandes bigodes e pequenos chifres. E em cima da porta aparece uma figura humana, de traços germânicos, com uma grande boca aberta, pousada sobre um barril.

    Como boa propaganda, aquele outdoor em forma de fachada sabia se comunicar com seu público-alvo. No início do século – diferentemente do que viria a ocorrer logo depois, com a Primeira Guerra Mundial –, enfatizar a origem germânica de um produto era bem proveitoso. As primeiras indústrias no Sul do país foram criadas por imigrantes alemães, como a Cia. Hering, fundada em 1880 em Santa Catarina, e a A. J. Renner & Cia. (hoje conhecida como Renner), fundada em 1912 no Rio Grande do Sul. Vigorava a ideologia de “branqueamento” da população brasileira, estimulada oficialmente pela política de incentivo à imigração. Com os olhos voltados para a Europa, o consumidor local certamente julgava um produto de origem alemã incomparavelmente melhor do que qualquer similar nacional.

    O conjunto de esculturas promete aos passantes uma outra vida, desejável e sedutora, fora da mesmice cotidiana, pautada menos pelo pensado e mais pelo vivido e sentido. Os seres mitológicos anunciam um mundo em que os homens se tornam fortes, a inteligência se aguça e os sentidos são estimulados. Se estar bêbado é algo banal e cotidiano para o proletário, e a embriaguez é considerada uma atitude condenável pela moral burguesa, na Cervejaria Bopp & Irmãos ela é transfigurada, reconhecida e incitada.

    Às principais esculturas da fachada foram acrescidos focos de luz elétrica, que faziam com que a parte esquerda do prédio pudesse ser vista à noite, mesmo a grande distância. Além de ser um símbolo poderoso de modernidade, a iluminação criava uma impressão fantasmagórica: as figuras luminosas, na escuridão, evocam um ambiente de fantasia, imaginação, devaneio.

    Coroando a mensagem “publicitária”, a disposição das imagens estabelece uma hierarquia que conhecemos bem: em cima está o clássico, o intelectual, o refinado, embaixo o popular, o folclórico, o grosseiro. O recado é claro: cada um deve saber qual é o seu lugar, e a partir desse lugar, aspirar a posições mais elevadas na estrutura social. Para conduzir nessa escalada, um bom copo de cerveja pode ajudar.

    Beatriz Valladão Thiesen é professora da Universidade Federal do Rio Grande.

    Saiba Mais - Bibliografia:

    IORIS, F. et. al. Histórico do Prédio da Cervejaria Brahma. Porto Alegre: PMPA/SMC/CMC/EPHAC, 1999.

    DOBERSTEIN, A. W. Porto Alegre 1900–1920: estatuária e ideologia. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura; Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1992.

    WEIMER, G. Arquitetura erudita da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia, 2004.

    A guerra das cervejas

    Ao longo do século, o prédio da Bopp & Irmãos, localizado na Avenida Cristóvão Colombo, 545, bairro Floresta, foi palco de disputas pelo mercado nacional de cerveja. Em 1924, realizou-se a fusão da empresa dos Bopp com outras duas grandes cervejarias, a Sassen e a Ritter, para fazer frente à expansão da carioca Brahma e da Antártica Paulista, que procuravam firmar-se no mercado gaúcho. A tentativa de barrar a concorrência foi feita com a criação da Cervejaria Continental, que, em parte, continuou produzindo no mesmo prédio, mas com novas tecnologias. Em 1946, a Brahma finalmente comprou a Continental, mas manteve a produção no prédio, graças a mais modernizações. Essa unidade de produção só foi fechada pela Brahma em 1998. O imóvel foi vendido ao grupo Correio do Povo e administrado pela empresa Unicenter. Sob empreendimento do grupo Porto Shop, ali instalaram um shopping center. A partir de 2003, o complexo foi ocupado pelo Shopping Total. Os prédios da Fermentação, Caldeiras e Escritórios, além da chaminé, são tombados pelo município desde 1999. A proteção legal, no entanto, não impediu que as obras do shopping alterassem completamente o interior dos prédios. Somente as fachadas foram mantidas.