Outorgada sim, mas liberal

Andréa Slemian

  • Mais de um ano havia se passado desde o grito de Independência às margens do Ipiranga. Em 12 de novembro de 1823, o mesmo D. Pedro I que liderara o ato “heróico” determinava a suspensão dos trabalhos parlamentares da Assembléia Constituinte instalada no Rio de Janeiro pouco mais de seis meses antes. O decreto afirmava que, “como Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil”, D. Pedro tanto tivera “o direito de convocar” a Assembléia como agora tinha o de “dissolver e convocar já uma outra”, em suas palavras, “mais liberal do que a extinta”. No dia seguinte, um novo decreto justificava a atitude diante da necessidade de fazer a “justa distinção entre os beneméritos que sempre tiveram em vista o bem do Brasil, e os facciosos que anelavam vinganças ainda à custa dos horrores da anarquia”. 

    Na História do Brasil, a dissolução da Assembléia de 1823 foi interpretada durante muito tempo como um ato despótico e “absolutista” do imperador, uma interpretação que se afinava com a idéia de que a Independência teria ocorrido sem qualquer mudança sociopolítica significativa. No entanto, há pelos menos duas décadas os historiadores têm revisado esta tese, demonstrando que a separação de Portugal teve impactos profundos na construção de uma nova ordem política no Brasil. O entendimento dos impasses que marcaram os trabalhos da primeira experiência legislativa brasileira se torna fundamental para a compreensão de um momento fundador de nossa história: o da formação das bases de um Estado nacional independente. Ao contrário do que se poderia imaginar, a curta e fecunda experiência da Assembléia de 1823 mostra como o sistema político que se criava para o Brasil estava vinculado ao que havia de mais moderno na época. E muitos dos seus princípios acabariam por vingar na Carta outorgada de 1824, que teria vida longa durante o Império.

    Para esta percepção, é necessário um olhar sobre o cenário do mundo ocidental, que desde o fim do século XVIII vivia uma franca transformação. Com os movimentos revolucionários, como a Independência das Treze Colônias de 1776 e a Revolução Francesa de 1789, surgia um novo ideal de governo que sintetizava no estabelecimento de uma Constituição alguns dos seus principais pressupostos. O “pacto constitucional” passava a ser sinônimo de preservação de “direitos invioláveis dos cidadãos”. Da mesma forma, passavam a ser fundamentais a separação e o controle entre os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), que até então não existiam nas monarquias. A novidade não era pequena, e representou uma das facetas do processo que ficou conhecido como “revoluções liberais”.
    No Império português, a monarquia da dinastia dos Bragança resistiu o quanto pôde à ameaça revolucionária. A transferência da família real para os trópicos em 1808, mais que uma fuga diante do avanço napoleônico, representou uma tentativa de preservação da dinastia e dos domínios portugueses na América, os mais rentáveis para a Coroa. Mas um duro golpe contra essa tentativa aconteceria em 1820, quando eclodiu na cidade do Porto uma revolução liberal exigindo o estabelecimento de uma Constituição e a volta do monarca à Europa, com ampla adesão nas províncias do Brasil. Com isso, D. João VI foi coagido a aceitar o movimento e a deixar em 1821 a urbe carioca, onde seu filho ficou como regente. Foi então instalado em Lisboa um Congresso Constituinte – as “Cortes de Lisboa” –, que assumiu a liderança do governo e a tarefa de construir uma monarquia constitucional.

  • Mas a unidade dos domínios portugueses se mostraria impraticável, dada a incompatibilidade de posições entre os deputados de Portugal e os de algumas das províncias americanas. Desde fins de 1821, as soluções legislativas aprovadas nas Cortes foram cada vez mais vistas, sobretudo pelas elites do Centro-Sul do Brasil – região que mais ganhara com a residência do monarca –, como contrárias a seus interesses. Este teria sido o propulsor da Independência de 1822 e da permanência de um centro de poder executivo no Rio de Janeiro. Mas a criação de um Império independente não formou, da noite para o dia, uma nova unidade. Em um primeiro momento, províncias como Pará, Maranhão, Piauí, Bahia e Cisplatina não aderiram ao Rio de Janeiro, transformando-se em violentos cenários de guerra; a maioria das regiões só viria a integrar o Império depois da intervenção de força armada, contratada pelo governo imperial.

    Por outro lado, a criação de um regime constitucional no Brasil também angariaria adeptos em muitas partes. A convocação de uma Assembléia Constituinte para o Brasil, feita por D. Pedro I ainda em 1822, contribuiu para que elites provinciais imaginassem um ambiente favorável para o atendimento de suas demandas fora do espaço das Cortes de Lisboa. A abertura da Assembléia, porém, ficara para o ano seguinte e, apesar da expectativa criada pela instituição de um “novo pacto político”, seria marcada por fortes tensões. Um problema central ainda se impunha: como deveria ser a composição de uma monarquia em moldes constitucionais? Caberia ao monarca manter um controle sobre os demais poderes ou caberia aos “povos” controlar o poder do imperador? Os protagonistas desta história não tinham uma única resposta. Aí estava o problema.

    A Assembléia Legislativa e Constituinte do Império do Brasil iniciou seus trabalhos em 3 de maio de 1823, quando nem todas as províncias da América portuguesa tinham se alinhado ao governo do Rio de Janeiro. No Sul (Província Cisplatina, atual Uruguai) e no Norte (Bahia, Pará e Maranhão), o cenário era de conflitos entre grupos que lutavam ou pela manutenção dos laços com Lisboa ou pela adesão ao novo imperador. Dessa forma, a Assembléia foi aberta com pouco mais da metade do número de deputados esperado, sendo que algumas províncias nem chegariam a ter representação. Embora alguns de seus membros questionassem sua validade, acabaria por imperar o princípio moderno de que os eleitos da “nação” teriam que responder pelas necessidades gerais, e não pelas específicas de cada local.

    A primeira polêmica em torno da Assembléia ocorreu logo nas sessões preparatórias, quando eram discutidos os limites dos poderes do monarca e dos deputados. A definição do papel de cada um no espaço parlamentar deu margem a dois posicionamentos antagônicos: por um lado, o daqueles que defendiam que o imperador só seria agraciado com este título depois de definido seu papel pela Constituição; por outro, o dos que defendiam a “glória, esplendor e aparato” do monarca como “chefe da nação”. Esta polêmica aparecia cotidianamente nos debates e era a prova mais clara de que o Brasil não era exceção em relação ao que estava em pauta em todo o mundo ocidental: a definição dos limites entre o Executivo (governo) e o Legislativo (representantes da nação).

  •  Fica claro que, para nossos primeiros legisladores, os contornos dos novos poderes políticos tinham que ser resolvidos em relação à herança monárquica. Salta aos olhos como aqueles que de antemão reconheciam a preservação da autoridade soberana do imperador apoiavam o projeto de união de todas as províncias luso-americanas e a centralidade da Corte no Centro-Sul. Não punham em discussão essa unidade. De outra parte, a valorização do papel dos representantes e da Assembléia em detrimento do monarca tinha apelo, sobretudo, entre os deputados de províncias menos integradas com o Rio de Janeiro, bem como entre aqueles que defendiam uma ampliação da participação política da população. Embora houvesse uma ascendência dos primeiros no início dos trabalhos legislativos, os partidários da segunda posição mostravam-se sempre presentes.  

     Os debates sobre a organização dos governos das províncias resultariam em conflitos de posições ainda mais intensos. O projeto escolhido para iniciar a discussão foi o do paulista Antônio Carlos de Andrada Machado. Ele previa a extinção das Juntas Provisórias, governos criados pelas Cortes de Lisboa em 1821 que funcionavam nas capitais das províncias ultramarinas a partir da eleição local de seus membros. Em 1823, vários deputados se colocaram contra sua extinção, defendendo-as como “instituições que os povos esperaram, que receberam com gosto, e que tanto têm respeitado”. Também foram contrários à escolha de presidentes de províncias pelo imperador, numa clara defesa da autonomia das localidades. Mesmo assim, quando da votação do projeto, ganhou a substituição das Juntas pelos presidentes.

    Vale notar que o projeto, que, em última instância, reforçava a criação de um sistema de governo centralizado na Corte e nos presidentes de província, continuava sendo aprovado, artigo por artigo, em plenário, sem maiores alterações, até meados de 1823. A partir de então, observa-se uma mudança de tom nas discussões, com a tensão na Assembléia crescendo. A alta temperatura tinha dois motivos principais: a chegada dos representantes da Bahia que, após a pacificação da região, encamparam na Assembléia propostas de maior autonomia local; e também a saída dos irmãos Andrada (José Bonifácio e Martim Francisco, irmãos de Antônio Carlos, o autor do projeto) do ministério de D. Pedro I, após haverem participado ativamente do movimento de Independência.

    Apesar das posições contrárias, a lei que dava nova forma aos governos provinciais seria uma das poucas aprovadas durante os trabalhos da Assembléia de 1823. Mesmo assim, a polêmica acerca das relações políticas entre as províncias e a Corte voltou à cena com a discussão do Projeto de Constituição. Nele, eram nomeadas as antigas capitanias que integrariam o Império, sendo que a Cisplatina seria incorporada “por laços confederais”. Foi quando o deputado baiano Antonio Ferreira França propôs que se estabelecesse o sistema geral do Brasil como “confederal”. A reação foi imediata: deputados saíram em defesa da proposta, argumentando em nome das autonomias locais diante da “vastidão, e mesmo a grandeza de cada uma de suas províncias”. O teor da justificativa era que monarquia e federação seriam princípios compatíveis, sendo possível preservar os “direitos das províncias” num arranjo descentralizado.

  • Nessa hora, o clima em plenário esquentou ainda mais. Passou-se a falar em uma “monarquia federal”, proposta que se atrelava bem à defesa de projetos políticos contrapostos à centralidade da Corte. E embora muitos deputados – sobretudo das regiões Norte e Nordeste – encampassem essa bandeira, eles não formavam um grupo homogêneo. Representantes de outras regiões também defenderam a idéia, vendo nela a possibilidade de ampliação dos espaços locais de decisão de forma independente do governo imperial. Ou seja, uma maior autonomia para que os grupos hegemônicos nas províncias consolidassem seu poder.
    Os contrários à federação argumentavam que aceitá-la seria o mesmo que dizer às províncias: “governai-vos por leis próprias: escolhei cada uma de vós o governo que muito quiserdes”, ou “sois livres e independentes”. Obviamente, esta concepção caía muito bem para os defensores de um arranjo político favorável à centralização imperial, bem como à preservação de um forte poder executivo do monarca. Com dificuldade, foi aprovado que a palavra “federação” não faria parte do citado artigo da Constituição. O que mais uma vez comprovava a extrema dificuldade de se estruturar, por consenso, os poderes políticos de cada novo regime.

    As tensões crescentes na Assembléia acabaram servindo de justificativa para a atitude de D. Pedro: a dissolução. Com isso, o imperador se valeu de um dos instrumentos típicos de moderação política previstos pelas Constituições das monarquias européias restauradas após 1814: o fechamento do espaço de representação popular. Seu ato, portanto, se inscrevia no rol de pressões e dificuldades típicas de processos políticos existentes no mundo ocidental naquele momento, onde se fazia urgente o equilíbrio de forças entre governo e sociedade civil. A despeito da especificidade do caso brasileiro, em que a nova monarquia mantinha a velha dinastia, também aqui o constitucionalismo seguia adiante, sendo recriado em moldes moderados.

    No início de 1824, D. Pedro I outorgou uma Carta Constitucional, redigida por um Conselho nomeado por ele. O documento articulava monarquia e Constituição de forma cautelosa: garantia os direitos civis inalienáveis (propriedade e segurança), incluía ex-escravos na condição de cidadãos, separava os poderes de modo a produzir um controle interno de suas funções; ao mesmo tempo, criava categorias de exclusão econômica para o exercício dos direitos políticos, introduzia o “bicameralismo” (com Câmara de Deputados e Senadores), centralizava muitas decisões do executivo na figura do monarca, para o qual instituía o Poder Moderador. A Carta de 1824 chegou a ser vista com bons olhos por liberais da Europa, onde o clima da restauração informava regimes ainda mais conservadores do que o brasileiro. 

    É fato que o fechamento da Assembléia Constituinte em 1823 e a outorga da Carta de 1824 provocaram reações contrárias muito contundentes, das quais a Confederação do Equador, em Pernambuco, foi a mais violenta. No entanto, a despeito delas, o Império do Brasil consolidou um regime que, mesmo sendo conservador em termos políticos, era, sem dúvida, liberal. Nele, a escravidão e a concentração de renda não eram impeditivos, sequer problemas a serem enfrentados, mas elementos típicos de um liberalismo que não fugia aos padrões de injustiça e desumanidade vigentes na época.


    Andréa Slemian é pesquisadora do Projeto Temático “Fundação do Estado e da nação: Brasil c.1780 – c.1850” na USP, financiado pela Fapesp, e autora de Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). Hucitec, 2006.