Outras telas para outros papéis

Ana Paula C. Simioni e Manuela Nogueira

  • Georgina de Albuquerque e seu marido, o também pintor Lucílio de Albuquerque, no ateliê do casal. (s/d) (Imagem: Reprodução)Em poucos países do mundo as mulheres artistas ocuparam lugar tão central junto às vanguardas como aconteceu com as pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, integrantes do movimento modernista brasileiro, cujo marco principal foi a Semana de Arte Moderna de 1922. 
     
    Paradoxalmente, a fama que conquistaram acabou por obscurecer o conhecimento sobre as trajetórias e as produções de diversas artistas anteriores a elas, ou mesmo suas contemporâneas. É como se antes (ou para além) das modernistas simplesmente não tivessem existido mulheres artistas. No entanto, entre 1844 e 1922 mais de 200 mulheres participaram das Exposições Gerais de Belas Artes (a partir da República, chamadas Salões Nacionais de Belas Artes). Algumas obtiveram destaques e condecorações, outras alcançaram alto grau de profissionalização, vivendo de sua própria arte. 
     
    Georgina de Albuquerque foi uma das que realizaram contribuições notáveis para a afirmação da mulher artista no Brasil, nos fervorosos anos 1920. Embora contemporânea de Anita e Tarsila, ela não estava vinculada aos círculos modernistas, mas sim ao sistema acadêmico, que girava em torno da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Mais do que qualquer outra artista de seu tempo, Georgina procurou cunhar expressões plásticas capazes de representar as mulheres como sujeitos da história.
     
    Georgina Moura de Andrade nasceu em Taubaté, interior de São Paulo, em 1885. Começa a pintar aos 9 anos de idade, incentivada pela mãe. Aos 15 passa a ter aulas com o pintor italiano Rosalbino Santoro e, aos 19, muda-se para o Rio de Janeiro com a intenção de ingressar na Escola Nacional de Belas Artes. É ali que conhece seu futuro marido, o também pintor Lucílio de Albuquerque, com quem se casa em 1906. 
     
    No próprio dia do casamento o casal partiu para Paris, onde viveria até 1911. Nesse período, Georgina frequenta a Académie Julian, escola privada que era grande referência mundial na formação artística acadêmica. De volta ao Brasil, a pintora ganha diversos prêmios importantes, principalmente nas exposições realizadas pela Escola Nacional de Belas Artes, onde passa a lecionar na década de 1920. Como mulher, alcança dois postos inéditos na instituição: em 1920 começa a fazer parte de um júri de pintura, e entre 1952 e 1955 assume a direção da Escola.
     
    O ano de 1922 foi marcado não apenas pela Semana de Arte Moderna, mas pela celebração dos 100 anos da Independência do Brasil. No Rio de Janeiro, então capital da República, a Exposição do Centenário previa a realização de uma mostra sobre as principais modalidades de trabalho no país, da lavoura às belas artes. Para o evento foram produzidas duas pinturas que buscaram realçar a participação da imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro I, na história nacional: Imperatriz com seus filhos, pintada em 1921 pelo artista de origem italiana Domenico Failutti, e Sessão do Conselho de Estado, de Georgina de Albuquerque, finalizada em 1922.
     
    Um simples olhar para as telas revela quão diferentes são suas interpretações sobre a imperatriz. Ambas podem ser tomadas como discursos sobre os lugares vislumbrados para o sexo feminino na sociedade. De um lado, a mulher como sujeito político; de outro, como mãe. A pintura de Georgina estabelece um diálogo original e crítico em relação à tradição pictórica brasileira, ao outorgar à mulher um papel heroico. 
     
    Diferindo também da abordagem de Pedro Américo, autor da representação mais consagrada sobre o tema (Independência ou morte, de 1888), Georgina não atribui a D. Pedro I o protagonismo no processo de Independência. Para começar, a artista escolhe outro momento a ser fixado na história: a partir do livro de Rocha Pombo intitulado História do Brasil, publicado em 1905, Georgina identifica a reunião do Conselho de Estado, presidida pela princesa Leopoldina, no dia 01 de setembro de 1822, como a ocasião em que, de fato, se teria decidido a Independência. À esquerda encontra-se a princesa sentada, e à sua frente está um grupo de conselheiros liderados por José Bonifácio, um dos mentores intelectuais da emancipação, que expõe os fatos que justificam a decisão tomada pela governante.
     
    Em contraste com a tela Independência ou morte, na obra de Georgina a autonomia do país não envolve atitudes bélicas, mas decisões políticas refletidas, gestadas em um gabinete e lideradas por uma mulher. Leopoldina é retratada como uma antípoda do marido – herói viril e violento, nas imagens comumente associadas a D. Pedro I. É elegante e serena, e sua força não provém dos atributos físicos, mas sim dos intelectuais. Enquanto a imperatriz articula a Independência politicamente, cabe a D. Pedro I apenas “dar o Grito”, ou seja, a simples execução da ação. Opondo-se ao imaginário da época, que concebia as mulheres como seres frágeis, irracionais e sensíveis, a heroína construída por Georgina de Albuquerque é a própria personificação do autocontrole, a líder intelectual do ato fundador do Estado brasileiro.
     
    A pintura de Domenico Failutti vai em direção oposta: ressalta o olhar terno e plácido, a beleza angelical, as vestimentas soberbas, a ambientação doméstica e, principalmente, a relação da princesa com seus filhos. Ao contrário de Georgina, ele minimiza a relevância pública da imperatriz Leopoldina, ao subordiná-la ao domínio doméstico e ressaltar a maternidade como sua principal virtude, ou seja, a produção de herdeiros como sua contribuição para a história.
     
    As duas obras refletem uma verdadeira luta simbólica em tempos de República sobre as posições das mulheres naquela nova ordem. De um lado, as reivindicações das feministas por direitos políticos e sociais, levadas a cabo pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (fundada em 1922), sob a liderança de Bertha Lutz. De outro, o discurso da “maternidade virtuosa”, ideologia dominante ao longo da Primeira República (1889-1930), que restringia a contribuição feminina à simples “reprodução”: louvava-se sua capacidade de produzir os filhos homens, estes sim os verdadeiros motores da história. Georgina apropria-se de uma figura do passado imperial para produzir um discurso cujo sentido se encontra no presente. A princesa concebida pela artista cristaliza a possibilidade da mulher como sujeito político, agente e protagonista da história.
     
    Em No Cafezal, obra produzida por volta de 1926, a pintora deu novamente mostras de seu desejo de retratar as mulheres como sujeitos ativos. Em vez das senhoras de elite, representa trabalhadoras provenientes de uma classe menos abastada. Entre as nove pessoas que aparecem carpindo café em uma plantação, há oito mulheres e um homem. Pela alvura da pele, as figuras femininas parecem ser imigrantes, mas o homem tem traços mestiços, como nas representações tradicionais de caipiras. Enquanto todas elas executam o trabalho, absortas em suas atividades, ele é o único que descansa, inerte, e observa. 
     
    Com estas duas pinturas, Georgina de Albuquerque produziu representações inovadoras da figura feminina em relação à tradição artística brasileira, distanciando-a do papel de vítima da colonização (caso de indígenas ou negras), ou das senhoras elegantes, cujos corpos estampavam suas capacidades reprodutivas (caso das brancas). Em um quadro, as mulheres são concebidas como agentes de ação, e seu trabalho ativo auxilia nas lavouras da maior riqueza produzida no Brasil de então; em outro, surge a líder intelectual do maior passo histórico para o nascimento da nação. 
     
    Nas discussões então em vigor sobre qual o lugar das mulheres na ordem social, Georgina deixa clara a sua posição.
     
    Ana Paula C. Simioni é professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e autora de Profissão Artista: Pintoras e Escultoras Brasileiras, 1884-1922 (Edusp/ Fapesp, 2008). Manuela Nogueira é geógrafa e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Arte e Poder da Universidade de São Paulo.
     
    Saiba Mais:
     
    BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade. Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, 1914-1940. São Paulo: Edusp, 1999.
    DEL PRIORI, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2007.
    LOPES, Gilda de Almeida. “A História que os Pintores Contaram”. In: Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, vol. XXIII, 1972.