Página em construção

Júlia Ribeiro Junqueira

  • Logo da Comissão Executiva do Centenário da Independência: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, 1922. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Quando o centenário da Independência brasileira aproximou-se nas folhas dos calendários em 1922, museus, bibliotecas e diferentes instituições públicas e privadas passaram a preparar a celebração. Cada qual a seu modo. Um campo privilegiado para a construção de efemérides é a imprensa. E entre as várias edições especiais elaboradas para a data, destacou-se a do renomado Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. No esforço para despertar o sentimento patriótico, sua intenção era representar nada menos do que a “síntese da história do Brasil”.
     
    Interpretar comemorações de datas nacionais torna-se mais atraente, para alunos dos ensinos fundamental ou médio, quando eles se dão conta de que esses eventos são planejados para destacar alguns elementos e omitir outros. Instituições costumam adotar recursos específicos, como a organização de eventos cívicos e campanhas de esclarecimento patriótico ou, mais recentemente, exposições, inauguração de monumentos, confecção de selos, medalhas, bandeiras e hinos, entre inúmeras outras atividades. No meio disso tudo, há o papel da imprensa.
     
    Desde a sua fundação em 1827, pelo tipógrafo francês Pierre Plancher, o Jornal do Commercio era o único periódico brasileiro que não sofrera nenhuma interrupção de tiragem. O fato de ser quase contemporâneo da Independência (apenas cinco anos mais jovem) conferia-lhe certa superioridade sobre os demais jornais. Os redatores tinham autoridade para anunciar que suas coleções, que já totalizavam mais de 30 mil edições, deveriam constituir os “Grandes Anais da Nacionalidade”. Hoje, não é incomum que jornais apresentem suas versões como verdades da história, da política ou da economia brasileiras. Mas um exercício interessante é questionar: o que atualmente confere mais credibilidade a um jornal do que a outro?
     
    O número especial do Jornal do Commercio era composto por nada menos que 470 páginas. No editorial, afirmava que “a melhor forma de comemorar a data do primeiro centenário da nossa Independência política seria a que pôs em prática e que este número especial atesta e realiza: – o aproveitamento do próprio material que guarda. Poderíamos reconstituir a história com esses e outros documentos, mas, tendo o Jornal cabedal de tal ordem, seria contraproducente ir buscar em outros lugares o que não falta nas suas coleções”. 
     
    O jornal insistia numa concepção de história passível de ser reconstituída a partir da seleção do que considerasse adequado ou não: “Se não é possível escrever a história do Brasil sem consultar as coleções do Jornal do Commercio, não caberia a nós escrever história senão fazendo uma seleção do que nos parece mais apropriado para reconstituir o século de vida independente do país que hoje confirma as alegres esperanças de seus grandes fundadores”. 
     
    Porém, o objetivo de Félix Pacheco, redator-chefe do Jornal do Commercio à época do centenário, não foi atingido como planejado. O jornalista previa o uso das coleções do periódico sem que houvesse uma só interferência por parte dos redatores, ingerência que acabou ocorrendo. Por esta razão, o exemplar deu clara ênfase ao período imperial, enquanto a história republicana foi registrada superficialmente, reduzida à caracterização administrativa dos estados brasileiros. Outra questão foi informar os fatos ocorridos entre 1822 e 1827, quando o Jornal do Commercio não existia. Os redatores tiveram que se apoiar em informações de várias origens, inclusive de outros jornais, como o Spectador Brasileiro, periódico do próprio Pierre Plancher que circulou entre 1824 e 1827. E talvez o problema mais grave tenha sido a frustração de não ver concluída a tão esperada edição comemorativa a tempo de ser lançada em 7 de setembro. No dia do centenário, foi divulgada apenas a ilustração da capa da futura folha, acrescida da introdução e dos primeiros capítulos da narrativa, relativos aos anos de 1822 e 1823.
     
    É possível perceber que os redatores usaram, na construção da narrativa, alguns recursos para enfatizar a história do período monárquico, destacando essencialmente os seus aspectos políticos – que ocupou cerca de 70% de toda a edição. Bom exemplo é uma notícia referente à Constituição no ano de 1824: “O Império do Brasil era a associação política de todos os cidadãos brasileiros, formando uma nação livre e independente não admitindo, com qualquer outra, laço algum de união ou federação. (...) Seu governo a Monarquia Hereditária, constitucional e representativa, com a dinastia de atual imperador D. Pedro I. A religião católica continuava como religião do Império (sic)”.
     
    A preferência explícita pelo período monárquico não se limitava ao noticiário. Até no uso de imagens há claramente um enaltecimento do Império. Enquanto Epitácio Pessoa foi o único presidente republicano dos 12 que houvera até então a ter uma foto publicada, os personagens da monarquia ganharam muito mais evidência: havia retratos de D. João VI, José Bonifácio de Andrada e Silva, D. Pedro I, sua primeira esposa, a imperatriz Leopoldina, e D. Pedro II.
     
    Félix Pacheco e os demais organizadores da folha especial mantiveram silêncio sobre esse espaço reduzido do período republicano nos “grandes anais da nacionalidade”.  Mas assim como o que está dito explicitamente encarna as preferências e as prioridades daquele que narra a história, aquilo que não se faz presente em um discurso também deve ser investigado. Uma interpretação possível pode estar no receio de tratar os acontecimentos dos últimos trinta anos, que carregavam tantas inquietações e crises. Desde a implantação do regime, em 1889, houve dois governos provisórios, um dos quais visto como uma ditadura nacionalista, e sucessivos presidentes exercendo seus mandatos sob estado de sítio. Sem falar nos períodos de censura à imprensa, revoltas populares e levantes militares.
     
    Para os redatores do Jornal do Commercio, tocar nesses assuntos em 1922 não seria propriamente “fazer história”. A opção do periódico refletia um determinado tipo de historiografia – campo do saber que se ocupa da escrita da história – orientada pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no século XIX. Para esse tipo de “fazer história”, o distanciamento temporal dos fatos era fundamental, pois evitava julgamentos precipitados e conferia maior imparcialidade à narrativa. Discorrer sobre os acontecimentos do período imperial significava evitar o embate com figuras e forças políticas do tempo presente. 
     
    Ainda hoje há quem pense assim, apesar das mudanças historiográficas ao longo do século XX – como a criação, inclusive, da História do Tempo Presente, que pretende especializar-se no tratamento dos acontecimentos mais contemporâneos ao historiador. Em sala de aula, é sempre bom questionar como a nossa história vem sendo veiculada nas mais variadas mídias.
     
    Em 1922, devido às celebrações do centenário da Independência, os redatores do Jornal do Commercio procuraram transmitir aos leitores a sua visão dos fatos, elencando um tópico central a ser explorado: o conteúdo político, juntamente com os correspondentes – história militar, diplomática, constitucional, administrativa e parlamentar. Será que esses tópicos ainda são os que mais ocupam as páginas dos nossos jornais e revistas quando abordam alguma data histórica comemorativa? Como a cultura, os costumes, o cotidiano, as sociabilidades estão presentes hoje nesses espaços midiáticos?
     
    Analisar a edição especial do Jornal do Commercio ajuda a perceber os periódicos – com seus artigos, notícias e imagens – como fontes e objetos de pesquisa ao mesmo tempo. Pensar a história através de suas colunas talvez seja uma maneira atraente e instigante para que os alunos possam compreender não apenas os fatos em si, mas, principalmente, que a história está sempre em construção e que a todo tempo ela pode ser revisitada e revisada. 
     
    Explorando jornais, revistas e outros tipos de mídias com os alunos, o professor abre um campo de possibilidades para que seus educandos não se tornem meros receptores de informações. Especialmente em um momento em que se veicula um volume gigantesco de notícias, constantemente atualizadas. Que história está sendo construída agora diante dos nossos olhos? 
     
    Júlia Ribeiro Junqueira é autora da dissertação Jornal do Commercio: cronista da História do Brasil em 1922 (UERJ, 2010).
     
    Saiba Mais:
     
    CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
    MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992.
    OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “As festas que a República manda guardar”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 2 (4), p. 172-189, 1989 e A questão nacional na primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.
    PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. A máquina da memória: o tempo presente entre a história e o jornalismo. Bauru: Edusc, 2009.
    Livro de Ouro comemorativo do centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1923. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.