Páginas de sonho

Andréa Borges Leão

  • Era uma vez uma época em que não existia televisão. Em compensação, o mundo estava cheio de gigantes, animais falantes, náufragos, canibais, monstros e toda sorte de seres mágicos. Nesse tempo, uma das maiores diversões das crianças era mergulhar em aventuras nas páginas de livros, onde encontravam personagens inesquecíveis como Gulliver e Robinson Crusoé.

    Muito popular na Europa, a literatura infanto-juvenil se consolidou no Brasil durante o século XIX, em grande parte por mérito de um livreiro francês que cruzou o oceano para se aventurar nos trópicos. Essa é a história de Baptiste-Louis Garnier e de sua livraria no centro do Rio de Janeiro.

    Os “Garnier Fréres” do Palais-Royal – como eram conhecidos Baptiste-Louis e seus irmãos Auguste, Pierre e Hippolyte – fizeram a “escola da rua”. Vendiam livros baratos nas calçadas da galeria parisiense, ao mesmo tempo em que atraíam uma clientela chique e editavam escritores bem posicionados nos círculos intelectuais, como Sainte-Beuve, Victor Hugo, George Sande e Balzac. Sócios na empresa, os irmãos dividiam as tarefas: enquanto Auguste e Pierre vendiam livros usados, literatura ilícita e gravuras obscenas, Hippolyte cuidava da parte nobre do negócio, editando os autores românticos. As brochuras libertinas ficavam escondidas nos fundos da loja. Na vitrine, exibiam-se os livros cristãos e os clássicos, dicionários e manuais escolares. Em 1844, Hippolyte, o mais empreendedor dos Garnier, tomou a ousada decisão de enviar o caçula Baptiste-Louis para o Brasil.

    Ele chegou ao Rio aos 21 anos, e tratou de cumprir a missão para a qual fôra destinado pela família: montar uma livraria e editora. Instalada na movimentada Rua do Ouvidor, a Garnier oferecia um catálogo com famosas coleções de clássicos para crianças e jovens – fábulas de La Fontaine, contos de Perrault, Andersen e irmãos Grimm –, livros que apresentavam as maravilhas da indústria moderna e escritores como Mme. Le Prince de Beaumont, autora do livro O Bazar das Crianças e do célebre conto A Bela e a Fera. Crianças entre 3 e 6 anos, que ainda não haviam aprendido a ler, podiam se deliciar com os chamados Álbuns de P.-J. Stahl – pseudônimo do editor Pierre-Jules Hetzel – fartamente ilustrados, como o ABC Trim e as peripécias de Toto e Tom.

    A figura do livreiro-editor despertava sentimentos ambíguos. Por um lado, eram vistos como “burgueses” capitalistas, ao tratar os livros como mercadorias. Por outro, associavam-se a uma atividade intelectual, quase confundidos com a figura romântica do escritor – alma que vive da inspiração e sente horror ao dinheiro. Baptiste-Louis não escapava desse duplo rótulo. Uma série de anedotas o qualificava como avarento: dizia-se que aproveitava a parte não escrita dos envelopes das correspondências que recebia para fazer de bloco de anotações, que reaproveitava selos que não tinham carimbo do Correio e que quando nos restaurantes limpava o prato com miolo de pão. O letreiro na porta da livraria, com as iniciais B. L. Garnier, era lido como “o Bom Ladrão Garnier”.

    O meio literário carioca, no entanto, o tinha em alta consideração. Num tempo em que os autores costumavam ceder às editoras os direitos sobre a venda dos livros, há relatos de que Baptiste-Louis e seus sucessores pagavam muito bem. Em 1857, por exemplo, a editora remunerava por um manuscrito o equivalente a um ano do trabalho de um professor. Também costumava fazer empréstimos a seus editados. Além disso, a livraria se transformou em ponto de encontro de intelectuais e escritores, para “conversações tranqüilas, algumas longas”, como definiu Machado de Assis.

    A Garnier entrou para a história da literatura nacional ao publicar, pela primeira vez, romances de Machado – Ressurreição (1872) – e de José de Alencar – Cinco minutos / A viuvinha (1860). E as principais obras dos dois autores continuariam a ser publicadas com o selo Garnier. A editora também lançou as primeiras coleções nacionais de livros infantis traduzidos do francês por autores brasileiros (até então, as traduções vinham de Portugal), como Viagens Extraordinárias de Júlio Verne.

    De tudo podia-se encontrar na Livraria Garnier. Havia livros de religião, de artes militares, medicina, filosofia, direito, política, dicionários e manuais escolares, coleções específicas de autores, entre outros gêneros e outras línguas, como alemão, italiano, inglês, espanhol, grego e latim. Da Europa, os livros chegavam em navios e muitos percorriam longas distâncias a caminho das capitais das províncias, atendendo às encomendas de leitores de todas as partes do Brasil. Em resumo, tratava-se da mais importante livraria da capital do Império, a ponto de Baptiste-Louis ficar conhecido como “o livreiro do Paço”.

    E a família Garnier expandia seus negócios para além do Brasil, traduzindo obras para o espanhol e difundindo-as por toda a América Latina. Mas o senso de oportunidade fez Baptiste-Louis manter a importação de originais franceses. A livraria carioca inaugurou um sistema de distribuição desses livros para os países da América do Sul, servindo de entreposto comercial para obras infantis das principais casas editoriais de Paris. As condições financeiras da família permitiam assumir esse tipo de risco — além das boas vendas dos livros clandestinos, Hippolyte acumulara grande fortuna imobiliária e ganhara muito dinheiro com a compra de ações na bolsa de valores de Paris.

    A partir da segunda metade do século XIX, outros comerciantes de livros estrangeiros também se instalaram na corte, como os Leuzinger, os Lombaerts e os Laemmert. Em São Paulo, destacava-se Anatole Louis Garraux. Ao trazerem livros, idéias e modelos literários do Velho para o Novo Mundo, possibilitavam aos leitores e escritores brasileiros o encontro com a criação e a diversidade cultural européias.

    A prática de leitura dos clássicos juvenis franceses no Brasil não foi um simples caso de dominação cultural. As traduções para o português e os usos originalíssimos que nossos escritores fizeram deles, em adaptações e recriações, são marcos importantes de nossa literatura para crianças e jovens.  Bons exemplos disto são os personagens dos contos de fadas das histórias de Monteiro Lobato e da trilogia da Condessa de Ségur, Sofia, a Desastrada, As Meninas Exemplares e As Férias, recontada pelo escritor baiano Herberto Sales.

    Mas o que representava o Brasil para os livreiros parisienses? Será que a vinda de Baptiste-Louis teve motivação apenas comercial? Durante todo o século XIX, a França conheceu uma forte atração pela América tropical. Os livros de viagens faziam sucesso por lá. Narrativas de cronistas, artistas e cientistas naturais sobre a geografia, as plantas, os animais, a vida e os costumes de índios e negros despertavam curiosidade por temas que na época causavam forte impacto social, como as relações coloniais, a escravidão, a migração e os processos de independência.

    Os relatos das viagens de Ferdinand Denis (1798-1890) e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) ao Brasil, por exemplo, eram verdadeiras lições de vida e sobrevivência nos trópicos. Havia uma boa produção de narrativas de viagens para os jovens franceses, com ilustrações, gravuras em madeira e litografias coloridas. Sem falar nos romances juvenis de aventura, com destaque para os livros Os Portugueses da América, de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier (1847) e A Jangada – oitocentas léguas pelo rio Amazonas, de Júlio Verne (1881). A sedução pelo exotismo tropical e o interesse pela “vida selvagem” podem ter influenciado a empreitada brasileira dos Garnier.

    Baptiste-Louis não casou nem deixou descendência. Quando morreu, em 1893, recebeu de Machado de Assis uma derramada homenagem, destacando seu pioneirismo na publicação de autores nacionais: “Editar obras jurídicas ou escolares, não é mui difícil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor de obras literárias, o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras”.

    Seus negócios ficaram a cargo de Hippolyte e depois do sobrinho, Pierre. A Garnier fechou suas portas em 1934, mas a influência da livraria permaneceu ao longo do século, na longevidade das obras que Baptiste-Louis comercializou. Muitas permanecem nos catálogos das coleções de clássicos infantis e juvenis de nossas principais editoras, empolgando renovados e numerosos leitores.    

    Andréa Borges Leão é professora da Universidade Federal do Ceará e autora da tese “Brasil em Imaginação – livros, impressos e leituras infantis (1890 a 1915)” (USP, 2002). 

    Saiba mais - Bibliografia:


    HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2ª. edição, 2005.

    LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. O Preço da Leitura: Leis e Números Por Detrás das Letras. São Paulo: Editora Ática, 2001.
     
    MOLLIER, Jean-Yves. L’argent et les Lettres – Histoire du Capitalisme D’édition 1880 – 1920. Librairie Arthème Fayard, 1988.

    Encanto renovado

    Algumas traduções dos romances juvenis franceses fizeram e ainda fazem muito sucesso no Brasil. Após as edições Garnier, a trilogia da Condessa de Ségur passaria a compor a Biblioteca Infantil da Livraria Francisco Alves, no início do século XX. Nos anos 1930, aparece nas versões de Arnaldo Oliveira Barreto e Miriam Gaspar de Almeida para a Biblioteca Infantil da Editora Melhoramentos. Em seguida, surge nas adaptações da professora Virgínia Lefèvre e de Sônia Maria Penteado Piza, para a Editora do Brasil. David Jardim Júnior lançaria a obra seguriana na Biblioteca Infantil de Ouro das Edições de Ouro, da Gráfica Tecnoprint. Na década de 1970, a obra da Condessa ganha maior circulação, transformando-se em livros de bolso, mais baratos e acessíveis, com as recriações de Herberto Sales, para as Coleções Baleia Bacana e Elefante. Até hoje, a trilogia da autora é mantida no catálogo da Ediouro. O mesmo acontece com as obras de Júlio Verne, cujos temas e personagens logo saíram das histórias de aventuras e viagens extraordinárias pelos mares, rios e ares, povoando outros gêneros – como os quadrinhos da revista infantil O Tico-Tico – e adaptados para a TV e o cinema.