Páginas esquecidas

João Paulo G. Pimenta

  • "Batalha del Rincón de las Gallinas", na qual o Exército brasileiro combateu forças locais e das Procíncias Unidas do Rio da Prata em 1825. O conflito não teve vencedores e resultou na criação do Uruguai.

    Na Província Cisplatina, criada para fazer parte do Brasil em 1821, não havia imprensa isenta. Como, aliás, no restante do mundo português. Localizada na interseção dos impérios ibéricos na América, a região era foco de uma profunda instabilidade política. Portugal, Espanha, o governo de Buenos Aires e forças locais disputavam a área, contribuindo para que os jornais atuassem como um importante campo da arena política.

    A volta de D. João VI e sua corte para Portugal, em abril de 1821, estimulou ainda mais a agitação política. O momento era de incerteza em relação ao futuro da unidade do Reino Unido português, o que acabou afetando também seus domínios. Por isso, um dos ministros de D. João, Silvestre Pinheiro Ferreira, instruiu o governador português de Montevidéu, Carlos Frederico Lecor, o barão da Laguna, a realizar um congresso dos habitantes da região. O objetivo era que eles decidissem se o território seria incorporado às Províncias de Buenos Aires ou se seria criado um Estado autônomo. Com isso, esperava-se que Portugal e Brasil parassem de se intrometer nos assuntos de sua vizinhança americana e abandonassem as pretensões de conquista da região.

    A decisão era parte de uma estratégia política: Portugal abria mão de um de seus domínios, historicamente construído em torno de interesses comerciais e militares que conectavam Brasil e Rio da Prata, para tentar manter sua própria estabilidade política. Mas, desobedecendo às ordens que recebeu, Lecor reuniu em Montevidéu um congresso formado somente por poderosos habitantes da região que o apoiavam e criou a Província Cisplatina, considerada desde então uma parte do reino português do Brasil.

    A medida provocou forte descontentamento não só do rei, mas também das Cortes de Lisboa, do governo de Buenos Aires e da monarquia espanhola. As primeiras, porque não viam sentido em continuar gastando com os assuntos de uma longínqua fronteira americana; o segundo, porque desde 1810 queria que a região fizesse parte de seu Estado; e a última, porque ainda sonhava em reconquistar seus antigos territórios do Rio da Prata.

    Os processos de independência vividos pelas Américas portuguesa e espanhola fizeram surgir uma imprensa combativa. Em algumas regiões, já existiam impressos, incluindo jornais, mas só após 1808 estes começaram a se tornar um espaço de grandes debates e embates políticos. Nesse contexto, os jornais são, desde a sua criação, armas políticas cada vez mais poderosas, utilizadas pelos que adentram a arena política em defesa de seus interesses.

    Para fortalecer seu domínio e vencer a forte oposição – pois o governador favorecia alguns grupos locais em detrimento de outros –, a gente em torno de Lecor também recorreu aos periódicos. A imprensa criada em Montevidéu por seu governo a partir de 1821 representava uma ação política bastante comum naqueles tempos conturbados. Para ampliar as bases de apoio a Lecor, tradicionalmente formadas por grandes proprietários rurais e comerciantes, principalmente portugueses dos dois lados da fronteira com o Rio Grande, foi criado o jornal Pacífico Oriental de Montevidéu. O periódico – que publicou 27 números semanais, um suplemento extraordinário e algumas folhas soltas – era editado por Francisco de Paula Pérez, natural de Chuquisaca (atual Sucre, Bolívia), do qual pouco se sabe. Em suas edições, trazia artigos de opinião, documentos oficiais do governo Lecor, notícias do continente, incluindo as do Brasil, e notas sobre o movimento marítimo de Montevidéu, em português e em espanhol.

    Seguindo esse mesmo posicionamento político, foi criado também o Expositor Cisplatino, que só teve uma edição, e o Patriota, publicado de agosto a outubro de 1822, redigidos por Manuel Torres, de Buenos Aires, do qual sabemos menos ainda. Este segundo periódico semanal, editado em português e em espanhol, era semelhante aos outros em conteúdo, mas com uma peculiaridade: enfatizava os assuntos da província da Bahia, com a qual Montevidéu tinha importantes relações comerciais.

    Todos esses jornais eram monarquistas constitucionais, afinados com o liberalismo português, defensores da criação da Província Cisplatina, de sua incorporação ao Reino Unido luso na condição de uma província do Brasil, e da “pacificação” da região. Deveriam servir, portanto, aos interesses do governo de Lecor, que efetivamente apoiavam. Mas todos tiveram vida curta, pois a Província Cisplatina não oferecia estabilidade política. O próprio círculo de apoio a Lecor tinha muitas fissuras internas. Aliás, por toda a América, o tempo das independências era marcado por embates ferozes em defesa de projetos políticos variados, mudanças abruptas e constantes de posição de seus defensores, conflitos, incertezas e temores de todo tipo.

    Paula Pérez, o editor do Pacífico, por exemplo, desagradou a pessoas ligadas a Lecor e sofreu um atentado. Temendo por sua vida, decidiu acabar com seu jornal e abandonar Montevidéu. O editor do Expositor, cujo nome é desconhecido, foi preso e deportado para o Rio de Janeiro. Talvez o motivo fosse o que escrevera no único número de seu efêmero jornal: que D. João era um “rei hipócrita”, e seus ministros de “atrocíssima corporação” composta de “assoladores, de egoístas e de atrozes”. Sobre o Patriota, sabe-se apenas que, no momento em que sua última edição foi publicada, em outubro de 1822, a Província Cisplatina já estava profundamente dividida entre partidários da independência do Brasil e das Cortes portuguesas.

    A ruptura política no seio do Reino Unido luso atingiu a frágil unidade política da Província Cisplatina, que seria a última a aderir formalmente ao Império do Brasil, em fevereiro de 1824. Três jornais foram publicados em português naquele momento. Serenas Tardes do Molhe ou Entretenimento sobre as Indigestões Causadas pela Fruta do Tempo, de redação anônima, teve pelo menos um número, em 8 de fevereiro de 1823. Já o Semanário Político, redigido provavelmente por Manuel Anana, teve sete edições, publicadas de abril a junho de 1823. Mais duradoura, a Gazeta de Montevideo, redigida por João Maria da Costa, teve quatorze números, que saíram entre 6 de outubro e 20 de novembro de 1824. Deles, quase nada se sabe, salvo que procuravam dar alguma continuidade ao periodismo político filoportuguês (agora filobrasileiro) criado pouco tempo antes naquela conturbada província.

    O acirramento dos embates políticos na Província Cisplatina levou à guerra entre o Império de D. Pedro I e as Províncias de Buenos Aires, ocorrida de 1825 a 1828.  Sem vencedores, o conflito foi oneroso para ambas as partes e teve como resultado a criação da República Oriental do Uruguai. Durante o conflito, dois periódicos defensores do Império foram editados em Montevidéu: o Compilador Brasileiro, que teve pelo menos um número, em 22 de julho de 1826; e o Semanario Mercantil de Montevideo, que teve setenta e dois números publicados de agosto de 1826 a fevereiro de 1829.

        A experiência com uma imprensa periódica politizada e engajada é reflexo de um tempo em que os homens de letras ainda não nutriam delírios de que a atividade jornalística pudesse e devesse ser totalmente isenta de posições políticas. Esse jornalismo deve ser considerado um capítulo fundamental da História do Brasil, do Uruguai e da Argentina independentes. Apesar disso, ele ainda é pouquíssimo conhecido pelos pesquisadores.

    Os historiadores americanos do século XIX estabeleceram que era conteúdo nacional tudo aquilo que algum dia tivesse ocorrido dentro dos territórios que só agora eram considerados desta ou daquela nação. Assim, se o Estado e a nação brasileiros só foram criados em 1822, seria considerado parte de sua história tudo aquilo que, no passado, ocorrera dentro dos seus limites atuais. O mesmo valeria para Uruguai, Argentina, México, Colômbia, Venezuela, Chile, etc.

    Essa forma de pensar gerou graves distorções. Em 1821, por exemplo, ainda não existiam nem Brasil, nem Uruguai, nem Argentina, e a história da Província Cisplatina deveria simplesmente ser considerada parte da história do fim dos impérios ibéricos na América. Mas os recortes nacionais inventados no século XIX exigiram outro tipo de definição. O passado da Província não podia fazer parte da história do Brasil nem da Argentina, já que o território correspondente à Cisplatina em 1821 se tornou, em 1828, parte do Uruguai. Assim, a história da Província foi “engolida” pela história nacional desse país. E por ser uma criação política portuguesa e anexada ao Brasil, a Cisplatina foi considerada pelos historiadores uruguaios um episódio desprezível das muitas tentativas de suposta conquista estrangeira da região.

    A mesma lógica seguiu a história das “imprensas nacionais”. Os jornais criados em Montevidéu a partir de 1821, portugueses e brasileiros, jamais mereceram sequer uma linha dos historiadores da imprensa em nosso país.

    João Paulo G. Pimenta é professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata. (Hucitec, 2006.)

    Saiba Mais - Bibliografia

    ALONSO ELOY, Rosa (et.all). La oligarquía oriental en la Cisplatina. Montevidéu: Pueblos Unidos, 1970.

    BASTOS, Lúcia, MOREL, Marcos e FERREIRA, Tânia. (orgs.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj, 2006.

    FERRET J., Daniel Alvarez. Crónica del periodismo uruguayo. Montevidéu: Fundación Hanns Seidel, 1986.