Escritor e historiador, Luiz Alberto Simas é sempre muito procurado nesta época do ano. Especialista em sambas-enredo e cultura afro-brasileira, sabe como poucos analisar a evolução desse gênero musical único no mundo, e a cada carnaval é chamado a opinar sobre o que revelam as composições do desfile da vez.
Historicamente, o samba-enredo sempre foi um retrato do momento do país. Nasceu como estilo épico e patriótico, de exaltação aos heróis nacionais, nos anos 1930. Louvou a ditadura de Getulio Vargas, como um instrumento pedagógico das classes populares. Enredos negros, ou afro-brasileiros, iniciaram-se apenas na década de 50. Mas as denúncias dos horrores da escravidão e o canto à liberdade tiveram que silenciar sob a ditadura dos anos 1960 e 1970, quando as composições passaram a valorizar o patrimônio cultural de origem africana, além, é claro, dos sambas nacionalistas. Com a redemocratização, voltam a florescer a autoestima negra e uma variedade de temas populares.
Simas não chega a se empolgar com a safra de 2015. Com livro recém-lançado sobre o tema (Pra tudo começar na quinta-feira, com Fábio Fabato), ele lamenta a escassez de menções à vida cotidiana e a problemas atuais que afetam a população. Ironiza as confusões de informação dos enredos afro-brasileiros e os elogios à “harmonia das raças”. E lembra que a mais forte tendência são os enredos patrocinados. Dos 450 anos do Rio – cuja letra da Portela cita de passagem a “nave”, um dos principais programas da prefeitura – aos encantos da Suíça, de Minas e da ditadura da Guiné Equatorial, é o dinheiro que estabelece os desafios criativos para os sambistas. Haja jogo de cintura.
MINIENTREVISTA LUIZ ANTONIO SIMAS
O que acha dos sambas de enredo em 2015?
É uma safra mediana, não tem nenhum samba de antologia, daqueles que ficam. O da Viradouro é atípico: pegaram dois sambas do Luiz Carlos da Vila, que já existiam, e juntaram. Não é samba composto para o enredo, inverteram o processo clássico: foi a partir dos sambas que elaboraram o enredo.
Isso é bom?
É perigoso porque pode matar o samba-enredo como gênero: acaba com a disputa, a formação de compositores. Mas foi uma ousadia da escola, uma brecha no regulamento. Samba-enredo, a rigor, é uma obra de encomenda, talvez o único subgênero do samba que não tem como característica a espontaneidade do compositor. Por isso dizemos que não é um gênero lírico.
Como o contexto político influencia a temática dos sambas-enredo?
Durante a ditadura, por exemplo, os sambas afro deixaram de ter conotação política. Houve um deslocamento para o campo do mito, da temática religiosa, com os oxirás e santos. Na redemocratização, surgem temas do cotidiano. Em 1982, por exemplo, no grupo de Acesso, a Caprichosos fez Moça Bonita não paga, tratando de coisas como o cotidiano da feira livre e da inflação: “Tem zoeira, tem zoeira/ Hora da xepa é final de feira”. A Em cima da hora, em 1984, contou uma viagem de trem por toda a extensão da linha até a Central, os perrengues do trem, o horror do transporte coletivo.Este tipo de tema está em falta.
Quais são as tendências atuais?
A novidade dos últimos anos é a predominância de enredos vendidos. É um problema porque tem certos temas que não funcionam. É uma forma de captação de recursos, e os compositores que se virem pra resolver.
Este ano, quem é patrocinado?
A Beija-Flor vem com enredo financiado pelo governo da Guiné Equatorial. É original porque é contada por um griô [antigos reprodutores orais das tradições] e porque é a parte litorânea da África, no lugar da tradição de savana: foge daqueles tecidos pele de leopardo. O problema é que a Guiné Equatorial é uma das ditaduras mais sanguinárias do mundo. O enredo da Portela, patrocinado pela Prefeitura do Rio, parece cartão-postal, mas é como a cidade seria vista pelo Salvador Dalí.
E a forma de retratar a África, é muito estereotipada?
O samba da Imperatriz Leopoldinense segue a velha linha de tomar a África como uma coisa só e misturar. É uma homenagem a Mandela, que é do povo xosa, da África do Sul, mas tem expressões iorubá, como acarajé, axé e orixá, e da cultura banto, do Congo Angola, como capoeira, maculelê, canjerê. Uma salada.
Que outra interpretação histórica é clássica no carnaval?
O enredo do Salgueiro, patrocinado pelo governo de Minas, tem o prisma do velho discurso da mestiçagem como união harmônica, que prevaleceu [O branco, o negro e seus costumes/
Trazendo muito mais variedade/ Um elo em comunhão].Que samba destacaria?
O da Vila Isabel sobre Isaac Karabtchevski é interessante, tem bons trechos.