País em transe

Sander Cruz Castelo

  • É imprevisível a reação de quem assiste pela primeira vez ao filme Terra em transe, de Glauber Rocha. Em sala de aula, o longa de 1967 pode provocar tanto um silêncio estarrecedor quanto um debate acalorado. Ambas as reações são consequência do choque intelectual e sensorial que a estética de Glauber costuma gerar.
     
    Como os outros filmes do cineasta baiano, Terra em transe investe em experimentações de conteúdo e de forma, numa mistura poética de história e utopia. A linguagem é caricata e alegórica, mas não há dúvida de que se trata da revisão de um evento então muito recente: o golpe civil-militar de 1964. Por isso é importante, antes da exibição, apresentar aos alunos informações essenciais sobre o período e o acontecimento encenado. 
     
    O filme pode ajudar a desfazer versões reducionistas sobre aquele período, como a que opõe civis que lutavam democraticamente para reduzir as desigualdades sociais e militares defensores de uma elite conservadora a soldo do imperialismo norte-americano. Construída e difundida durante a Campanha pela Anistia, no final dos anos de 1970, esta versão parcial do golpe e de suas consequências inclui a guerrilha no campo da “resistência democrática”, omitindo, em grande parte, os seus objetivos revolucionários, como afirma o historiador Daniel Aarão Reis.
     
    Rende boa polêmica constatar que muitos daqueles que o filme apresenta como sujeitos históricos “vencidos” – com agendas políticas derrotadas pela instauração do regime militar – encontram-se hoje dirigindo o país, empenhados em construir uma nova “história oficial de esquerda” (no dizer de Daniel Aarão Reis), na qual se destaca a ideia da resistência democrática. Isto é facilmente verificável nos pronunciamentos, nas políticas governamentais e nos produtos da chamada “cultura de massa”. É provável, portanto, que a obra cause mais impacto pela radicalidade do discurso do que por alimentar o “bom-mocismo”, o senso de justiça ou o sentimento de que estamos do lado do bem (superioridade moral ou autoengrandecimento, conforme Roger Scruton).
     
    Terra em transe adota o ponto de vista do protagonista, Paulo Martins, jornalista militante e poeta, que se recusa a reconhecer que “a política e a poesia são demais para um homem só”. Sua radicalidade crescente coloca-o em confronto tanto com o trabalhismo (nacionalista, estatista, industrialista e distributivista, para Jorge Ferreira) e o comunismo, canalizados no personagem Vieira, governador de Alecrim, quanto com o udenismo (americanista e liberal, segundo o historiador) capitaneado pelo senador Porfirio Diaz. Pode-se dizer que Vieira é a personificação mista de João Goulart, o presidente deposto pelo golpe, e Miguel Arraes, à época do golpe governador de Pernambuco, estado onde eram fortes as Ligas Camponesas e o método de alfabetização de Paulo Freire. Já Porfirio Diaz parece representar Carlos Lacerda, governador da Guanabara que liderava a oposição a Goulart. 
     
    João Goulart e a esposa participam de um comício pelas reformas, realizado na Central do Brasil pouco antes do golpe civil-militar. (Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã)O protagonista se alia temporariamente com estas forças, mas as abandona à medida que toma consciência dos limites da política partidária. Estrategicamente, a personagem revela que a lógica do populismo se assenta na tutela das massas. Segundo René Gardies, professor e crítico de cinema francês, Paulo Martins ocupa o papel de mediação do intelectual revolucionário: entre os opressores (poder político e econômico) e os oprimidos (camponeses e operários), ele é a “terceira força”, desestabilizadora, a quem cabe a “inversão da ordem”. Glauber Rocha deposita no intelectual uma tomada de consciência exemplar, que se antecipa à que será vivida coletivamente pelos oprimidos no momento da revolução. Essa ação autônoma e de vanguarda do intelectual, que desborda dos papéis determinados pelo drama populista, surpreende e tende a comover o espectador, acostumado com os estereótipos das produções hollywoodianas. Topa-se com um (anti)herói cujo combate se volta, além de aos inimigos, aos que procura defender, a quem dirige as armas de uma “pedagogia da violência” (na acepção  da professora Ivana Bentes, inspirada no filósofo Gilles Deleuze).
     
    Boa atividade seria propor aos alunos a busca pelas influências dessa estética revolucionária. Ela é inspirada em dois artistas comunistas – o cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948) e o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) – e se apresenta em duas fases, segundo Glauber. A primeira, didática, põe fim à alienação dos oprimidos ao destruir os mitos colonizadores, valendo-se até mesmo do sadismo contra suas vítimas – como na cena em que Paulo agride fisicamente o líder camponês Felício. A outra fase, épica, estimula a agitação – também violenta – possibilitando a criação de novos mitos, relacionados a um povo que se quer soberano. Estes mitos renovados seriam forjados no caldeirão de nossas heranças africanas e indígenas. O carnaval é a metáfora, no filme em apreço, desse caráter dual (de transe) da cultura popular: ao mesmo tempo “alienada e transformadora”. 
     
    De que outras formas esse espécime de “cinema de guerrilha” (como o diretor Glauber Rocha concebia seu cinema), baseado na experiência histórica, na utopia revolucionária e na violência, favorece o ensino de História? Como a reação inicial de espanto dos alunos pode se converter em educação histórica? 
     
    Terra em transe coloca em perspectiva as forças políticas, econômicas, sociais e culturais em disputa entre as vésperas do golpe de 1964 e a confecção do filme. Trata, primeiramente, do declínio do “trabalhismo”, alicerçado na incorporação dirigida das massas à sociedade organizada, que se mostrara frágil e titubeante, como simboliza a ridícula figura da personagem Vieira. Por sua vez, o modelo de revolução (“democrático-burguês de conteúdo antifeudal e anti-imperialista”) defendido pelo Partido Comunista Brasileiro é apresentado a partir do que Glauber considera suas inconsistências: a necessidade de etapas revolucionárias e a consequente ênfase no nacionalismo, em detrimento da luta de classes, ou seja, na conciliação e não no conflito entre as classes sociais. No filme, os militantes comunistas são disciplinados, fanáticos, reféns de teorias prontas (teleologias) avessas à realidade, o que os condena a morrer abraçados com os trabalhistas.
     
    A burguesia nativa, personificada pelo magnata Julio Fuentes, cede à pressão do capital internacional – que paira na trama tal qual um titereiro, figura opaca, mas que tudo controla. Vale chamar a atenção dos alunos para a Explint, a multinacional que capitaneia o golpe em conluio com o embaixador dos Estados Unidos e o político Diaz, assim que o trabalhismo e a burguesia nacional fogem do controle, numa operação que faz lembrar a verdadeira – Brother Sam – em que os norte-americanos garantiram retaguarda aos militares no golpe de 1964. 
     
    Os militares aparecem como fantoches da burguesia nacional e internacional e do latifúndio – este representado pelo “coronel” Moreira, mandante do assassinato do líder camponês Felício. A única preocupação militar parece ser a de garantir a ordem. Sua “interpretação autoritário-modernizante do país” (no dizer de Bresser Pereira), gestada na Escola Superior de Guerra, previa de fato uma aliança com o empresariado nacional e internacional.
     
    Outra força é a Igreja, fiadora do populismo (seja do trabalhismo ou do udenismo), um anteparo para a “tradição, família e propriedade”. As lideranças populares, urbanas ou rurais, são retratadas como subservientes aos políticos. E quando ensaiam atravessar as fronteiras que lhes são impostas pela tutela populista, terminam mortas, como o líder camponês Felício. Os populares são apresentados como alienados. Na teatralização populista, cabe-lhes apenas o papel de figurantes. Caso sugiram algum protagonismo, acabam sacrificados – destino, no filme, do operário que se dispõe a altercar com o sindicalista Jerônimo.
     
    O professor pode debater com a turma em que medida o filme Terra em transe incorpora as teses ligadas ao “modelo de subdesenvolvimento capitalista” (termo de Guido Mantega), fundamentadas na “revolução permanente” de Leon Trotsky e na IV Internacional (1938). Dado o caráter desigual e combinado do capitalismo, os países periféricos estariam condenados à superexploração capitalista, restando-lhes optar entre o fascismo e o comunismo. Atualizadas por Che Guevara (1928-1967) com a proposição de uma revolução tricontinental (América-África-Ásia) contra o imperialismo, essas ideias deram corpo às guerrilhas, inspiradas, além de Cuba, pelo maoísmo. São questões densas e profundas que podem ser iniciadas a partir das discussões geradas pelo filme.
     
    É preciso problematizar esse tipo de leitura do Golpe de 1964 que valoriza elementos externos, como o imperialismo norte-americano, e os de longa duração, como o absolutismo monárquico e a contrarreforma, e minimiza os condicionantes internos e de curta duração, como o anticomunismo, o impasse entre o Executivo e o Legislativo e a quebra da hierarquia nas Forças Armadas. Terra em transe não apresenta narrativa consistente sobre 1964, mas é um valioso vestígio de como parte da intelectualidade de esquerda lia o Brasil nos primeiros anos após o golpe.
     
    Além disso, mostra-se por vezes autocrítico, ironizando o próprio ponto de vista adotado. Em algumas passagens, coloca o ideal revolucionário na berlinda, evidenciando a impotência, o quixotismo, a irresponsabilidade e o anseio pelo poder dos intelectuais radicais. Segundo o filósofo Leslek Kolakowski, o empenho pela “salvação total do homem” por meio da “negação total do mundo existente” acaba por subestimar valores fundamentais, gerando, justificando e eternizando a “dor” e o “sofrimento”. A revolução, ao calar assim a “responsabilidade moral”, não venderia o Mal como o Bem, consistindo numa falsa profecia?  
     
    Sander Cruz Castelo é professor da FECLESC-UECE.
     
    Saiba Mais
     
    BENTES, Ivana. “Introdução: o devorador de mitos”. In: ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 9-76.
    GARDIES, René. “Glauber Rocha: política, mito e linguagem”. In: GERBER, Raquel et al. Glauber Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 41-94.
    RAMOS, Alcides Freire & BERNARDET, Jean-Claude. “História imediata”. In: Cinema e História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988.