Paisagens de um novo mundo

Daniel de Souza Leão Vieira

  • Algumas imagens fazem o observador viajar no tempo. Quem olhar para a gravura “Mauritiopolis” poderá se sentir transportado à capital do Brasil holandês de 1645. Lá estão o porto do Recife, a ponte sobre os rios Capibaribe e Beberibe, e a Cidade Maurícia. Tudo em um impressionante panorama visto da linha de arrecifes que dão nome à cidade.

    Os holandeses decidiram invadir Pernambuco, capitania rica em produção açucareira, em 1630. Desde a União Ibérica, em 1580 (quando o reino de Portugal foi incorporado à Coroa espanhola), os espanhóis fecharam os portos brasileiros aos neerlandeses, com quem estavam em guerra, e que então, sem acesso à produção brasileira de açúcar, criam a Companhia das Índias Ocidentais, em 1621, com o objetivo de invadir terras na América. Os anos que se seguiram foram de guerra entre os invasores e as tropas ibéricas, que resistiam. A conquista holandesa só foi concluída em 1637, com a chegada do conde João Maurício de Nassau (1604-1679). Foi ele quem empregou Frans Post (1612-1680) e o incumbiu de representar as vilas e fortes sob domínio holandês.

    Em 1645, mesmo ano em que o artista fazia os desenhos sobre o Brasil, os senhores de engenho em Pernambuco se insurgiram contra os holandeses, até que conseguiram expulsá-los do Brasil em 1654. A composição “Mauritiopolis” foi gravada como prancha do livro de Gaspar Barléus (1584-1648), escritor flamengo que narrou a história do governo de Nassau no Brasil, entre 1637 e 1644. A publicação, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, de 1647, é uma das edições mais luxuosas do século XVII, também chamado de “o século de ouro da Holanda”, por sua posição de destaque no cenário mundial, tanto no campo comercial quanto nos campos artístico e científico.

    Outros 32 desenhos de Post integram o livro de Barléus, e são tão ricos em detalhes e em precisão que chegaram a ser comparados a fotografias. E o estilo pessoal do artista foi logo tomado como característico do olhar descritivo da escola holandesa de paisagem.

    Esses artistas do século XVII tornaram-se mestres na arte de pintar, desenhar e gravar a paisagem. Antes deles, só os pintores flamengos do século XVI e alguns italianos haviam se dedicado ao gênero. Mas foram os holandeses que mais desenvolveram o costume de aliar a observação cuidadosa da realidade ao emprego de técnicas precisas de representação artística. Se até o século XVI os pintores de paisagem tinham o hábito de criar composições puramente imaginadas, foram os artistas holandeses que melhor usaram essa tradição para representar as cidades, os caminhos e os campos de seu próprio país.

    As cenas que apresentavam as cidades, por exemplo, foram perdendo o caráter estilizado. Em geral, bastava que o artista representasse um conjunto de torres e telhados circundados por uma muralha para que se estivesse diante de um burgo medieval do norte europeu, ou mesmo de uma cidade mediterrânea da Idade Antiga. A partir do século XVII, os artistas holandeses preferiram cada vez mais compor paisagens que se assemelhassem ao aspecto visual dos sítios observados. Maior artista holandês de seu tempo, Rembrandt (1606-1669) deixou numerosos desenhos contendo cenas dos arredores de Amsterdã. Essas imagens podem, até hoje, ter seus pontos de vista localizados.

    “Mauritiopolis” é um bom exemplo dessa tradição paisagística. Ao contrário de outros artistas, Frans Post não representou o sítio onde hoje se encontra a cidade do Recife com montanhas imaginadas ao fundo. Ele pintou em conformidade com a planura do litoral, e sua observação precisa se traduziu em uma composição predominantemente horizontal. Dois terços da composição ficaram para o céu. O ponto de fuga foi situado na extrema direita da composição. A imagem corresponde ao observado. Post representa especificamente as localidades da Cidade Maurícia e do Recife, e sua observação transformou-se, por meio da descrição da paisagem, em representação de lugar.

    A paisagem como vista topográfica teve um importante papel na cultura visual da Holanda do século XVII. Ela tornou possível o reconhecimento de localidades nas imagens produzidas, reforçando o sentimento de identidade entre o grupo social e o seu lugar. Esse processo de autoidentificação com os lugares pátrios serviu como alternativa simbólica para uma sociedade cujo regime de governo era republicano.

    Era comum aos Estados monárquicos da Europa da Idade Moderna a identificação do corpo político com o corpo físico do soberano. As imagens dos rostos dos soberanos tornaram-se símbolos políticos, primeiro em moedas e depois em quadros, como verdadeiras cabeças do Estado. De acordo com essa imaginação, os chefes de Estado eram representados em retratos, inclusive montados a cavalo. Tratava-se de um tema que unia o apelo aristocrático do cavaleiro à imagem de poder e status. O próprio Nassau mandou que se fizesse um retrato equestre dele próprio. Nele, sob as patas do cavalo, à distância, está a vista da cidade alemã de Cleve, onde ele foi governante depois de deixar o Brasil. A imagem demonstra a submissão da comunidade política ao príncipe soberano.

    Mas o caso holandês era diferente. Conquistada a independência em relação à Espanha em 1581, o sistema de governo adotado foi o de uma república formada por sete províncias unidas. O príncipe de Orange era o líder militar, mas não o soberano. De acordo com essa realidade social, convinha que as imagens de autoidentificação evitassem a referência aos nobres. Então os holandeses preferiram usar os temas relativos à paisagem local como imagens de sua terra pátria, base do sentimento de pertencimento à comunidade civil e política.

    As vistas topográficas apareciam em mapas murais, em gravuras vendidas nos mercados e mesmo em quadros que decoravam as casas tanto dos ricos como dos menos abastados. Quando essas composições são comparadas com a da gravura de Frans Post, é possível perceber que ele representou as localidades do Brasil com o mesmo tratamento dado às cenas pátrias. Até então, terras estrangeiras eram geralmente associadas ao perigo e se traduziam, nas telas, em litorais com penhascos rochosos e com águas tempestuosas. Já as cenas de praias tranquilas, planas e com mares calmos, tão características da região, eram facilmente associadas à paz, à prosperidade e ao caráter doméstico da própria Holanda.

    O mesmo modo de representar a paisagem da Cidade Maurícia e do Recife como cena pátria holandesa aparece em outro elemento da imagem: o brasão oficial da Capitania de Pernambuco, sobreposto à própria paisagem, no céu, dando um caráter de imagem oficial à vista. Trata-se de uma sobreposição, recurso típico da escola holandesa de artes visuais. O brasão é composto de um emblema formado por uma mulher com um espelho e segurando uma cana-de-açúcar, personificando Pernambuco. Essa imagem é compatível com os emblemas que aparecem nos livros holandeses da época. A originalidade de Frans Post foi incluir motivos tropicais no formato holandês. A Dama da Nova Holanda segura o Espelho da Prudência na mão esquerda, e seu olhar se volta para a cana-de-açúcar na mão direita. Fonte da riqueza colonial do Brasil holandês, a atividade açucareira deveria sempre ser prudentemente cuidada.

    A mesma lógica de misturar motivos tropicais na paisagem típica holandesa se espalhou para as outras obras que Frans Post criou para representar o Brasil holandês. Foi assim que emas e caranguejos foram parar em outros brasões, e coqueiros, mamoeiros, capivaras e tatus aparecem povoando as cenas. Tranquila e doméstica como a Holanda, mas exótica como a natureza tropical: eis a paisagem da Nova Holanda, nome oficial do Brasil holandês.

     

    Daniel de Souza Leão Vieira é autor de Topografias Imaginárias: A Paisagem Política do Brasil Holandês em Frans Post, 1637-1669 (Universiteit Leiden, 2010).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo: Edusp – Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

    BOXER, Charles. Os Holandeses no Brasil, 1630-1654. Recife: Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, 2004.

    HERKENHOFF, Paulo (org.). O Brasil e os Holandeses, 1630-1654. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999.

    LAGO, Pedro e Bia Corrêa do. Frans Post {1612-1680}. Obra Completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2006.

    SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: A cultura holandesa na época de ouro, uma interpretação. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

     

    Saiba Mais - Internet
    Instituto Ricardo Brennand

    www.institutoricardobrennand.org.br/index2.html