Não é fácil falar com Vincent Carelli. À frente do projeto Vídeo nas Aldeias desde 1987, o antropólogo paulista vive com o pé na estrada, nos rios ou nas matas. Após 22 anos botando câmeras, microfones e todo o apetrecho audiovisual nas mãos dos índios, ele começa a pôr essa produção para fora das malocas. No próximo mês, cinco DVDs resultantes da iniciativa, que já recebeu dezenas de prêmios e homenagens, serão enviados a três mil escolas do Brasil.
Acompanhados de um guia impresso para o professor, a ideia é que os vídeos sejam usados nas salas de ensino fundamental e médio. Da produção à edição, eles são inteiramente feitos pelos índios, pertencentes a tribos de Norte a Sul do país. Na tela, o cotidiano nu e cru desses povos. Sem remendos.
“Muitos professores ficam chocados com a nudez, com as brincadeiras do povo indígena, e têm muitas ideias equivocadas. Mas esse choque cultural é fundamental para os adolescentes”, ressalta Carelli. “Temos que produzir material didático, formar professores sobre o tema, para que eles não repassem seus preconceitos aos alunos”.
Quando começou a levar a câmera para as aldeias, o documentarista pensava em fazer um intercâmbio entre etnias sobre as diferentes experiências de resistência. Mas o interesse dos índios veio de outra forma. Diante das lentes, eles se sentiram motivados a realizar rituais que, em alguns casos, estavam esquecidos. “Esse entusiasmo de produzir registros e vê-los na tela foi uma experiência delirante. Eles acabavam resgatando cerimônias que tinham sido abandonadas havia anos”, conta.
O projeto acabou pendendo para esse lado. Desde o início, quase quatro mil horas de imagens já foram captadas entre 40 povos. Dos cerca de 70 vídeos concluídos, mais da metade saiu da cabeça dos índios. “O diferencial dessas produções é a intimidade. É o filho entrevistando o pai, o tio, o avô na própria língua. Isso impressiona, cativa o público”, acredita Carelli.
O público, aliás, vem aumentando a cada ano. “Das aldeias, os filmes já foram para festivais no mundo inteiro, sendo, inclusive, premiados. E agora estão saindo desse gueto de festivais e indo para a TV pública”, diz. Só a TV Cultura já exibiu 30 filmes do projeto. E a TV Brasil começa a entrar na roda. “Antes eles não aceitavam. Diziam que o formato, o tamanho e a linguagem não eram adequados. Hoje, os filmes são disputados a tapa”, brinca o antropólogo.
A previsão é que a boa maré continue. Após 18 anos vivendo à custa de recursos internacionais, a empreitada finalmente viu a cor do dinheiro brasileiro. Para Carelli, um sinal de que o país está começando a voltar os olhos para os povos tradicionais. Mas o movimento é lento, e ele sabe disso. “O projeto tem a preocupação com a memória, com a preservação de um patrimônio cultural que está sempre em risco”, diz. “Cada velho indígena que morre é uma biblioteca que se vai”. Algumas delas, pelo menos, já estão em vídeo.
Os DVDs podem ser adquiridos na Livraria Cultura (www.livrariacultura.com.br) ou na 2001 Vídeo (www.2001video.com.br)
Para além das malocas
Bernardo Camara