Para o alto e avante!

Lucita Briza

  • Há 60 anos, a aviadora brasileira Ada Rogato (1910-1986) investia seu pequeno avião contra as fendas existentes no paredão dos Andes, buscando alcançar o aeroporto mais alto do mundo, a 4.071 metros de altitude. Atingir El Alto – onde hoje está o aeroporto internacional que serve a La Paz, capital da Bolívia – naquelas circunstâncias era, segundo os especialistas, no mínimo uma temeridade: como desafiar a sorte num Cessna 140-A com teto útil entre 4.000 e 5.000 metros e um motor de apenas 90 cavalos, que perdia 10% de potência a cada 1.000 metros de altitude? Isto sem falar nos ventos que açoitam a cordilheira, provocando turbulências que tornam difícil controlar a leveza de um teco-teco, além do frio de muitos graus abaixo de zero, pois a calefação se limitava ao ar quente jogado pelo motor.

    Mas Ada não era mulher de desistir facilmente. Contava com sua bússola e com o fato de ter sido a primeira piloto de planador do Brasil e da América do Sul. Voando sem motor, aprendera a observar o céu para fugir de nuvens ameaçadoras e detectar os ventos, evitando correntes de ar que empurravam o avião para cima ou para baixo. Apostava ainda na experiência de seus mais de 70.000 quilômetros cumpridos até então em voos solitários – incluindo a chegada ao Círculo Polar Ártico um ano antes (1951), durante seu reide pelas três Américas. Deste, só ficara de fora um país: a Bolívia, pela dificuldade de alcançar sua capital, a mais alta do mundo.

    Na volta da viagem, buscara orientação dos engenheiros do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) para planejar a nova empreitada. Ada partiu de São Paulo num domingo e chegou a El Alto na sexta-feira da semana seguinte – depois de passar por Mato Grosso e, na Bolívia, por Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba. Segundo o jornal paulistanoA Gazeta de 15 de julho de 1952, ela decolou em seu Cessna, batizado de Brasil, do qual havia mandado retirar coisas “desnecessárias”, como um rádio pequeno de comunicação local, a bateria e a reserva de óleo do motor – que, com o tanque reserva de combustível, ficaram guardados em Cochabamba, penúltima escala na viagem de ida e primeira na volta. Na sexta-feira seguinte, após duas horas e meia de suspense e mão firme no manche, ela observava as altíssimas montanhas, tendo ao longe o Lago Titicaca, quando avistou a capital boliviana. Autoridades a aguardavam em El Alto e a conduziram a La Paz, onde dias depois ela declararia ao jornal local El Diario: “Agora posso dizer que fechei com chave de ouro meu voo das Américas”.

    A energia e a disposição da piloto – discreta, miúda sem ser bonita – era o que atraía simpatias. Louvou El Diario, “a aviadora brasileira (...) deu provas de que não lhe afetava o soroche [temido mal das alturas] nem o frio do altiplano”. Aliás, não lhe faltaram agrados por ter sido o primeiro piloto – entre homens e mulheres – a pousar ali com avião de pequena potência: Ada foi a primeira mulher no país a receber o brevê de piloto militar e ser condecorada com as Asas da Força Aérea boliviana; foi apresentada ao presidente Paz Estenssoro e dias depois recebeu dele a medalha Condor dos Andes – a mais alta condecoração do país. Enquanto isso, o aeroclube local trazia o Brasil de El Alto até uma praça central de La Paz para que os incrédulos bolivianos vissem o diminuto aparelho que a conduzira até lá.

    A essa altura da vida, recepções calorosas e condecorações já eram uma constante. Assim fora em 1951, quando pousou em todas as capitais e em outros pontos das três Américas, incluindo Fort Yukon, no então território do Alasca. O Washington Post deu destaque à aventureira que pretendia – e conseguiu – bater o recorde da maior distância no menor avião voando sozinha. Aviões civis e militares escoltaram sua chegada ao Rio de Janeiro, com a fuselagem do Brasil coberta de mensagens de todos os países pelos quais havia passado, até ela pousar cercada pela multidão. Em São Paulo, Ada desfilou em carro aberto desde o aeroporto do Campo de Marte até o Centro da cidade, aplaudida por onde passava.

    Antes ainda, em 1950, ao retornar de seu reide por Paraguai, Argentina, Chile e Uruguai – num Paulistinha CAP-4, de 65 cavalos – como a primeira piloto brasileira a vencer os Andes, ela foi condecorada pelo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Armando Trompowsky, que lhe como prêmio o Cessna 140-A. Em 1956, centenas de pessoas presenciaram, no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, tanto a partida como a chegada de Ada do seu circuito pelo Brasil. Nesse reide, ela sobrevoou o país de ponta a ponta, pousando em todas as capitais e atravessando o interior, incluindo o “inferno verde” amazônico, levando a bordo apenas um rádio de comunicação local.

              Em seu reide até Ushuaia, a cidade mais ao sul do planeta, na Argentina, Ada foi saudada pelo governador da Terra do Fogo como a primeira mulher a chegar pilotando até lá. Na volta, após enfrentar “ventos superiores a 100km/h, durante dez horas de voo (...) e numa temperatura de 3 graus abaixo de zero”, segundo a revista Aéro-Magazine, a aviadora foi homenageada num banquete em Buenos Aires, com a presença do secretário da Aeronáutica, quando recebeu o título de sócia honorária do aeroclube argentino e “um belíssimo troféu de ônix, prata e ouro, comemorativo desse último reide”, como informou O Estado de S. Paulo de 19 de junho de 1960.

            Com suas idas e vindas, Ada tornou-se amiga de embaixadores, ministros e chefes de governo, heróis de guerra e, mais tarde, de astronautas. O povo também a conhecia, fosse pela imprensa ou por vê-la de perto. A partir de 1941, quando foi a primeira mulher a obter brevê de paraquedista no Brasil, Ada se engajou na Campanha Nacional da Aviação, lançada pelo jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968), com apoio do Ministério da Aeronáutica, para multiplicar no país o número de aviões e de aeroclubes onde os jovens pudessem aprender a pilotar. Com suas acrobacias aéreas e saltos de paraquedas, ajudou a atrair público para os aeroclubes recém-fundados em todo o país. E em 19 abril de 1942, participou, com cinco rapazes, de uma experiência inédita: um salto noturno de paraquedas para cair nas águas da Baía de Guanabara, em homenagem ao aniversário do presidente Getulio Vargas – que, ao lado de cerca de 30.000 pessoas, acompanhou da praia o espetáculo.

    No entanto, a ousadia desses feitos não se refletia em sua vida pessoal. Nada podia prever que a filha de imigrantes italianos, nascida em São Paulo em 1910 e criada à moda da época – frequentando um bom e caro colégio, tendo aulas de piano e pintura – seria estrela de primeira grandeza da nossa aviação. Mas a febre de recordes de aviação que marcou as primeiras décadas do século XX já havia contaminado também as mulheres. Apesar da pressão paterna em contrário, Ada sonhava com heroínas como a americana Amelia Earhart (1897-1937), e já frequentava o Campo de Marte quando a alemã Hanna Reitsch (1912-1979), campeã mundial de voo em planador e futura piloto de provas do Terceiro Reich, se exibiu em São Paulo em 1934. No ano seguinte, foi Ada quem conquistou seu brevê de planador e em 1936, o de piloto de avião.

    Para ajudar a mãe, separada do pai, e sustentar seu “luxo”, arranjou emprego de escriturária no Instituto Biológico (IB) de São Paulo. Já sobrava pouco tempo para diversão e namoro, equando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Ada foi convocada para servir como instrutora de paraquedismo na Escola Técnica de Aviação. Como voluntária, fez também 213 voos de patrulhamento ao longo do litoral paulista.

    Terminada a guerra, o IB, ligado ao Departamento Estadual de Defesa Sanitária, iniciou um combate à broca do café, que dizimava plantações do nosso principal produto de exportação na época. Piloto hábil, Ada foi convidada para uma nova experiência: fazer polvilhamento aéreo nos cafezais com defensivos agrícolas. Num desses voos, que a qualificaram como a primeira piloto agrícola do país, sofreu o único acidente aéreo de sua vida, que lhe deixou o rosto marcado.

    Esse aguçado senso de cidadania acompanhou toda a trajetória da aviadora esportiva que ganhava a vida como funcionária pública modesta. Batalhadora e tão persistente quanto arrojada, soube perceber a onda de pan-americanismo que varreu o continente após a Segunda Guerra Mundial para, com seus voos no espírito de boa vizinhança, divulgar o Brasil no exterior.

    Após sua aposentadoria, em 1980, foi nomeada diretora e eleita presidente da Fundação Santos Dumont (FSD). Ada já fazia parte de várias entidades dedicadas à preservação da memória nacional, entre elas a própria FSD e o Museu da Aeronáutica de São Paulo, onde teve incansável atuação na defesa de sua grande paixão: a aviação. Após sua morte, em decorrência de um câncer, em 1986, sua história começou a desaparecer da memória nacional, exatamente como as trilhas de condensação dos aviões a jato se dissipando nos céus que Ada ajudou a conquistar.

     

    Lucita Briza éprofessora de Psicologia, jornalista e autora de Ada-Mulher. Pioneira. Aviadora (C&R Editorial, 2011).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    Bittencourt,Adalzira. A Mulher Paulista na História. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1954.

    Drumond,Cosme Degenar. Asas do Brasil. Uma história que voa pelos ares. São Paulo: Cultura, 2004.

    Hagedorn,Dan. Conquistadors of the SkyA History of Aviation in Latin America. Flórida: Universidade da Flórida, 2008.

    Penteado,João Ricardo. Voar: Histórias da aviação e do paraquedismo civil brasileiro. São Paulo: Senac, 2001.