Para romper a invisibilidade

Pedro Lapera

  • Capa do livro que conta a história de helzer, um jovem que nasceu num coro feminino, mas assumiu sua condição masculina e sofreu humilhações físicas e psicológicas na antiga Febem. (Editora Vozes)Era 1982 foi lançado A queda para o alto, livro no qual Anderson Herzer narra sua sofrida trajetória de descoberta da sexualidade dentro de um órgão estatal hostil e violento. O livro virou um sucesso editorial.

    O autor nasceu Sandra Mara, no interior do Paraná, em 1962. Teve uma infância dura, e nela todos os seus referenciais afetivos foram se perdendo. Aos 5 anos tomou forma a primeira lembrança que registra no livro: a visão do corpo do pai estendido no caixão, assassinado em uma briga de bar. Pouco tempo depois, sua mãe e sua avó paterna também faleceram. Adotado por um casal de tios, viveu conflitos com a nova família e seus problemas agravaram-se com a chegada da adolescência.

    Após viciar-se em álcool, foi compulsoriamente internado pela família adotiva em várias instituições. Até que chegou à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), responsável por adolescentes infratores. Ali experimentou novas drogas e, em meio aos horrores que vivenciou no contato com os agentes prisionais, aos poucos construiu sua identidade masculina. Assim que ingressou na instituição para menores, Herzer viu duas adolescentes tendo relações sexuais. A respeito de uma delas, constatou a identificação com sua aparência masculina: “era uma garota que mais tarde eu vim a conhecer como ‘um dos machões’ da Unidade. (...) Aquilo não me assustou, embora eu não soubesse de tal existência. De outro lado, sempre soube que desde a minha infância eu tive jeito de menino, chegando inclusive, numa festa familiar, a ser confundido com um garoto. Dentro de mim tinha um grande desejo de ter nascido menino”.

    Anderson atribui adjetivos masculinos para si próprio mesmo quando se remete à infância e ao início da adolescência, o que pode ser considerado como uma busca da afirmação da identidade masculina através da linguagem.

    A escrita, simples no estilo, interpela constantemente o leitor em busca de seu engajamento moral e afetivo com a história narrada. “Relatar, apenas, não é suficiente para que as pessoas possam sentir o quanto é constrangedora a visão de um local onde as pessoas são como objetos sem uso... depositadas”. Mesmo diante da adversidade extrema, o protagonista afirma ter atravessado os ritos de passagem que o levaram a abandonar seu papel feminino de Sandra e a assumir sua identidade masculina de Anderson, ou “Bigode”, como era conhecido entre as jovens detentas.

    Enfrentou os clássicos problemas do sistema penitenciário brasileiro – superlotação, condições precárias de alimentação e de higiene, paralelamente à perseguição transfóbica promovida pelo então diretor da unidade, endossada por alguns funcionários da instituição.

    “Bigode” se descreve como uma garota que paulatinamente enquadrou-se em uma postura masculina, a ponto de se tornar um homem digno de confiança, chegando a ser reconhecido por muitas como um “pai”.       Na narrativa, o diretor é seu grande adversário. Retratado como tirânico, “queria, de qualquer modo, que eu raspasse as pernas e usasse vestido, isso sem contar as humilhações que ele me fazia passar perante todas, com palavras de baixo calão, como, por exemplo, uma frase muito comum com a qual ele se dirigia a mim: – Machão sem saco, machão sou eu que tenho duas bolas! Ele dizia isso com gestos e voz alta para que eu sentisse vergonha de mim mesmo e mudasse os meus costumes”. As sessões “corretivas” comandadas pelo diretor contra Anderson e as detentas reconhecidas como “machões” incluíam socos na cara, chutes nas costas, além dos dias em que tinham que ficar quase o tempo inteiro parados no pátio principal apenas de short e camiseta, com direito a somente quatro horas de sono.

    O livro aproxima o leitor do sofrimento de um jovem cuja identidade foi dilacerada por uma instituição atrasada em seus métodos e desumanizadora em suas ações. Lançado logo após sua morte, A queda para o alto é dedicado ao então deputado estadual Eduardo Suplicy. Tutor do autor nos seus últimos anos de vida e testemunha da agonia de suas últimas horas, Suplicy também assina o prefácio do livro, que traz, além da narrativa autobiográfica, alguns poemas de Anderson. A obra está disponível na Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional.