Para sempre e nunca mais

Déborah Araujo

  • “O canto do cais do Valongo ôôôôôôô / Que veio de Angola, Benim e do Congo / Tem samba, capoeira e oração / O Rio sai da roda de jongo e vai desaguar”. Ao contar a história da avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, o samba-enredo da Portela no carnaval de 2014 lembra que tudo começou no antigo cais do Valongo. Desde sua construção, em 1811, até a proibição do tráfico transatlântico em 1831, o local foi a porta de entrada de 500 mil a 1 milhão de africanos escravizados no Brasil. O local foi reformado em 1843 para receber a noiva do futuro imperador, e aterrado em 1911 durante as reformas urbanísticas da capital carioca. Um século depois, descobriu-se um sítio arqueológico durante as obras do Porto Maravilha. Agora, esse lugar cheio de história pode se tornar Patrimônio Mundial da Humanidade da Unesco.

    A iniciativa partiu do Iphan e do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, que formaram o Comitê Consultivo de Candidatura do Cais. Até o dia 1º de fevereiro de 2015, o grupo pode apresentar à Unesco um dossiê sobre a importância do Cais do Valongo para a história mundial. O documento também deve argumentar sobre a capacidade de conservação do bem cultural pelas instituições brasileiras, e sobre aspectos de sua relação com comunidades tradicionais e movimentos de afrodescendentes. “Mesmo sendo um marco histórico, ele tem que ter um sentido de continuidade social”, esclarece a arquiteta Jurema Machado, presidente do Iphan. “Os símbolos históricos não existem apenas para celebrar. Muitas vezes são para não esquecer e para que não se repitam como crimes contra a humanidade”, acrescenta.

    Estima-se que a cidade do Rio de Janeiro tenha recebido cerca de 20% de todos os africanos escravizados que chegaram vivos às Américas em quatro séculos de tráfico. “Mais da metade da população brasileira se declara afrodescendente. Isso basta para indicar que a partir da tragédia da escravidão se construiu essa nação”, observa o professor de história Milton Guran, presidente do conselho de candidatura do Cais do Valongo.

    Apesar de dar ênfase apenas à preservação da memória africana visível hoje a partir das escavações, os organizadores do dossiê garantem que as camadas de passado que se sobrepuseram ao Valongo nos anos posteriores também serão contextualizadas e não se perderão. É o caso de outras peças encontradas no sítio arqueológico, sedimentadas quando a região funcionava como Cais da Imperatriz e, depois, Praça do Comércio. Exemplos disso são objetos de portugueses para cultos religiosos, caixinhas de joias, peças de louças e partes de navios, como âncoras e canhões. 

    Saiba mais:

    Descobertas e redescobertas no Cais: http://www.rhbn.com.br/secao/reportagem/descobertas-e-redescobertas-no-cais.

    O rol dos 18 bens naturais e culturais brasileiros que poderão ser futuramente inscritos na Lista do Patrimônio Mundial da Humanidade está disponível no site da Unesco (em inglês e francês): http://whc.unesco.org/fr/listesindicatives/?state=br&.