“Para nós, do Nordeste, a Semana de Arte nunca existiu”. A frase de José Lins do Rego (1901-1957) resume o espírito de uma geração de escritores e intelectuais nordestinos que punham em dúvida a autenticidade da questão nacional no movimento paulista e na sua Semana de Arte Moderna em 1922.
O comentário, em tom raivoso, era uma reação ao crítico Sérgio Milliet (1898-1966), para quem tudo que havia nas letras do Brasil era tributário à Semana. A crítica de Zé Lins, como era chamado pelos amigos, está num conjunto de textos publicados em um livro intitulado Gordos e magros (1942). Neles o escritor paraibano desdenha dos cânones de São Paulo, principalmente da sua ousadia e petulância de falar em nome da autenticidade nacional.
A proposta do grupo paulista dizia respeito a uma renovação nas artes mediada pela incorporação de vanguardas europeias e à valorização da cultura nacional. Foi contra essa suposta viagem ao interior do Brasil e suas tradições que Zé Lins se lançou. O autor enxergava nisso um gesto artificial e pouco sincero, destacando o tom aristocrático de uma casta de intelectuais eruditos apartados de qualquer contato com o mundo que supunham representar.
Mário de Andrade, por exemplo, é acusado de criar com Macunaíma (1928) um herói de ninguém. Pouco humano e artificial. Nesta crítica, o livro é chamado de cerebral, só entendido por eruditos. O romance teria uma linguagem fabricada, distante da língua do povo brasileiro: “se não fosse o autor um grande poeta, seria o Macunaíma uma coisa morta, folha seca, mais um fichário de erudição ecológica do que um romance”.
A agitação na literatura nacional incluía a explosão de novas gerações de autores não só em São Paulo, mas em várias outras cidades, como Belo Horizonte, Recife e Rio de Janeiro. No Nordeste surgia, desde a década de 1920, uma nova leva de escritores cuja relação com a terra, com a gente e com a vida rural traria para a literatura uma linguagem arcaica, mas seminal, reproduzindo aquilo que muitos tinham escutado na infância. Muito diferente da “língua inventada” dos paulistas. Trata-se, como o poeta alagoano Lêdo Ivo afirma, de uma valorização do “tesouro linguístico que veio pro Brasil quase com a colonização”.
O ímpeto por rupturas de São Paulo não encontrava ressonância ali. O passado colonial, fundamental na constituição da identidade da região, era, para este outro grupo, a matéria-prima da criação. E, dentro dela, a contribuição de suas diferentes matrizes formadoras. Mais tarde, Jorge de Lima, poeta e ensaísta do grupo de Maceió, consagraria a importância da cultura afro-nordestina em Poemas Negros (1947). Destacando sua influência na composição do brasileiro, os poemas refletem a experiência da miscigenação:
Pele,
Gozo, coração...
Negro, índio ou cristão?
Quem foi que te deu esta sabedoria,
Mais dengo e alvura,
Cabelo escorrido, tristeza do mundo,
Desgosto de vida, orgulho de branco, algemas, resgates, alforrias?
Não por acaso, foi Gilberto Freyre (1900-1987), ao retornar do exterior em 1923, quem fez questão de ressaltar a importância do regional para uma nova geração de escritores do Nordeste. Como ficou explícito no seu Manifesto Regionalista de 1926, Freyre reconhece a necessidade de se valorizar o peso do passado regional e da tradição patriarcal que dava forma à família e, por extensão, à sociedade brasileira. Ideias que poucos anos depois apareceriam na sua obra maior, Casa-Grande & Senzala (1933). Sua influência sobre os jovens escritores foi decisiva. Mais tarde, Zé Lins reconheceria: “posso afirmar sem medo que a ele devo os meus romances”.
No início da década de 1930, quando o Modernismo ainda lutava para se livrar das críticas de um movimento importado, o grupo de escritores e intelectuais nordestinos fazia sua estreia triunfante no cenário nacional. Rachel de Queiroz (1910-2003), Graciliano Ramos (1892-1953) e Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989) são alguns dos nomes de peso do grupo que se reunia em Maceió. Muitos deles filhos de uma aristocracia rural, essa geração ficaria responsável por oferecer alguns dos mais celebrados romances da literatura brasileira.
Foi na capital alagoana, em contato com esse grupo, que José Lins do Rego escreveu Menino de Engenho (1932), sua obra de estreia. Nascido em um engenho em Pilar, na Paraíba, seu romance é carregado de memórias pessoais, de um passado que teima em escapar. Fala de um tempo de senzalas, de um universo em vias de desaparecer pela chegada do maquinário da modernidade e da reação de uma oligarquia açucareira que vê o seu poder diminuir. Um tempo de grandes transformações históricas e econômicas no Brasil, com a industrialização, a urbanização, a imigração em massa e o fim da escravidão.
O Modernismo, no sentido mais amplo do termo, estava nesse duplo esforço para, num primeiro momento, atualizar as artes com uma linguagem e estéticas modernas e fazer com que traduzissem a pureza do nacional. O regionalismo de José Lins é carregado de memórias pessoais, de um passado orgânico, resgatado na simplicidade de uma linguagem popular, não fabricada. Criado no meio rural, o autor não tem receio de confessar o passado de filho de senhor de engenho. Pelo contrário, através dele remonta formas de vida que deram sentido ao ser brasileiro.
O escritor se pergunta como é possível, como assumia Milliet, que a literatura brasileira tenha surgido a partir de 22 se Gilberto Freyre já existia. A ficção nordestina percorreu caminhos desbravados pelo escritor pernambucano que insistia em perguntar: “Por que arrancar raízes que estavam tão bem pregadas à terra e desprezar os nossos sentimentos e valores nativos?”
José Lins do Rego foi modernista, como muitos dos seus conterrâneos, sem que nele houvesse o mesmo atrevimento dos paulistas de se proclamar porta-voz do nacional. Memorialista, ele criou no seu texto um painel da vida social que fala de um legado que não é só dele, mas de uma memória coletiva. Como resumiu o crítico João Ribeiro, ele “é de todo o Brasil, e um pouco de todo mundo”, como todo moderno queria ser.
Bruno Garcia é pesquisador da RevistadeHistóriadaBibliotecaNacional.
SAIBA MAIS - Bibliografia
IVO, Lêdo. “O Ensaísta José Lins do Rego”. In: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela Bezerra de. (orgs.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
REGO, José Lins do. O Cravo de Mozart é Eterno. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
REGO, José Lins do. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
Pauliceia deslavada
Bruno Garcia