Ele entrou para a vida pública há mais de 50 anos. São poucos os que conhecem o Senado, a Câmara e o Tribunal como ele. Ministro da Justiça durante o governo de José Sarney e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Paulo Brossard esteve presente e atuante nos principais momentos da política nacional. Entre idas e vindas, somente em Brasília foram mais de 20 anos. Lá estava Brossard: da reconstrução democrática após o Estado Novo, passando pela euforia desenvolvimentista de JK e os anos de chumbo, até o processo de consolidação democrática.
Legítimo gaúcho da fronteira, nascido em outubro de 1924 em Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, Paulo Brossard de Souza Pinto é especialista em Direito Constitucional, formado pela Faculdade de Direito de Porto Alegre (atual UFRGS). Quando estudante, acompanhava os debates da Constituinte de 1946 pelos jornais e pelo rádio. A política já corria no sangue. Pouco tempo depois, o pequeno Partido Libertador o escolheu como candidato a deputado estadual. E lá foi Brossard servir à nação. De lá pra cá, ele também foi deputado federal e senador, além de ter se candidatado à vice-presidência da República na chapa encabeçada pelo general Euler Bentes, disputando o cargo com o general João Figueiredo. Sobre o episódio, ele é taxativo: “Sabíamos que não tínhamos chance”.
Com bom humor e simpatia, Brossard recebeu a equipe da Revista de História em seu escritório, em Porto Alegre. Para ele, a República em que vivemos carrega um legado não muito feliz. “A República no Brasil foi um acidente”, afirma, sublinhando as fraudes eleitorais e a concentração excessiva de poder nas mãos do presidente que contaminaram a evolução desse sistema político por estas bandas. Brossard diz pertencer a um mundo que já não existe mais e está preocupado com o total desinteresse pela política hoje. Sem papas na língua, como de costume, o entrevistado garante: “Não há mais partido político, não há mais discurso. Discursar para quê? Para quem?” Com a palavra, Paulo Brossard.
REVISTA DE HISTÓRIA Como um autêntico gaúcho, o que o senhor mais gosta na cultura do Rio Grande do Sul?
PAULO BROSSARD É um estado que contribui muito para a literatura nacional, seja na poesia ou na prosa. E também para a história, o direito, particularmente o direito público. Na música, o nosso Lupicínio Rodrigues é uma glória regional. Uma vez eu estava com o saudoso professor uruguaio Eduardo Couture e vimos ao longe o grande Lupicínio. Eu disse: "Olhe, professor, aqui está a maior glória da faculdade de direito", ele tinha sido bedel na Faculdade. E na poesia, Mario Quintana foi o maior, uma figura... Na prosa, o Erico Veríssimo. Nas letras nós temos vários. E mesmo na literatura regional. Nós tivemos o Simões Lopes Neto, que é admirável, Darci Azambuja, que foi meu professor, foi sucessor do Simões Lopes, Moisés Vellinho e Carlos Dante de Moraes, críticos.
RH Os gaúchos fazem questão de afirmar sua cultura. A comemoração da semana da Farroupilha é um exemplo. O que acha disso?
PB Farroupilha vem de farrapo. Farrapo vem da pobreza, dos dez anos que passaram peleando em condições extremamente difíceis, só com sobra de valentia. Os republicanos começaram a desenterrar o movimento Farroupilha para dizer que eles eram os novos farroupilhas, que vinham restabelecer aquilo que tinha sido frustrado. Depois da República, esse quase endeusamento do movimento e tudo mais foi cultivado. Talvez o ponto culminante tenha sido em 1935, no centenário, quando houve uma comemoração nacional. Ultimamente tem um caráter muito mais popular.
RH O senhor acompanha os escândalos políticos?
PB Sim, infelizmente. O escândalo das passagens, por exemplo. Quando o Congresso era no Rio de Janeiro, ninguém tinha passagem, apartamento, automóvel, nada disso. Em Brasília, era preciso dar passagem. O sujeito não podia ir a Brasília. As famílias estavam todas radicadas no Rio de Janeiro. E a capital ainda não estava pronta. Então, de uma hora para outra, foi feita essa transformação. Em 1976, como deputado, eu cheguei lá com duas passagens, e ninguém perguntou se aquilo era regular ou não. Até porque a passagem era mais cara que o subsídio. Esses benefícios foram criados por lei? Não, foi por ato da Câmara.
RH Como é hoje?
PB Eu não sei responder. Sou de um outro mundo, que já desapareceu. Mas o que sabemos pelos jornais é que o sujeito eleito tem hoje recursos além de subsídios . O que é verba indenizatória e verba de gabinete? Eu fui parlamentar por 24 anos e não sei o que é isso. Faz quase 30 anos que eu deixei o Senado, e nesse entretempo foram muitas as modificações. O problema é que, como eram progressivas, passaram despercebidas. Fonte idônea informou que o Senado tem 10 mil funcionários. Parte desses 10 mil foi nomeada por indicação de quem? Senadores...
RH A Constituição completou 20 anos. Ela ainda é atual?
PB Antes de responder, é preciso lembrar que tivemos um período muito longo de regime de exceção, francamente autoritário. Total a insegurança jurídica, de modo geral foi se armazenando grande massa de reivindicações para sair daquele quadro. Quando a Constituinte foi convocada, não havia Constituição que pudesse acolher todas aquelas as demandas.
RH Não havia como atender às expectativas?
PB Não. Queriam botar tudo na Constituição. Ora, a Constituição não é lei ordinária. Ela não foi feita para ser mudada. E o que vemos hoje? Em 20 anos, nossa Constituição já teve mais de 50 emendas. Ou seja: botaram coisas ali que não precisava, e também acabaram tirando outras tantas que podiam estar lá muito bem.
RH Em sua época havia muitas medidas provisórias?
PB Naquele período chamava-se decreto-lei, foi um abuso. Bastava não votar para ser aprovado por decurso de prazo. Então, a maioria nem rejeitava e nem aprovava. Era um completo absurdo. Um belo dia, resolveram acabar com aquilo. Mas o que vemos hoje é que isso continuou com outro nome. É a medida provisória. Em vez de decreto-lei, passou a ser medida provisória. Mudou o nome. As contribuições criadas por medidas provisórias deformam a divisão tributária feita pela Constituição. É muito grave.
RH A oposição política hoje é movida por ideais?
PB Atualmente, não sei. No meu tempo, a oposição era minoria na Câmara e no Senado. Quando é a maioria, é fácil conduzir as coisas. Nós não tínhamos condições, por exemplo, de constituir uma Comissão Parlamentar de Inquérito [CPI]. Era preciso um terço, e nós tínhamos 20 assinaturas, faltava uma. Até que conseguimos fazer uma, porque dois senadores originalmente da Arena, o Magalhães Pinto e o Teotônio Vilela, resolveram assinar. E a nossa comissão foi criada e constituída, ela funcionou. Não era como hoje, que para constituir uma comissão é preciso recorrer ao Supremo com mandado de segurança porque a maioria simplesmente não indica os seus representantes.
RH Pode-se dizer que vivemos de fato em uma República?
PB Pelos rótulos dos nossos vinhos, nós vivemos em uma monarquia. Isso é curioso. Embora o vinho tenha vindo praticamente depois da república, para valorizá-lo, coloca-se um título nobiliárquico. É que a República no Brasil foi um acidente. O Partido Republicano era um partido francamente minoritário, em todos os estados. No Rio Grande do Sul, nós tivemos um único deputado republicano durante o Segundo Reinado, Assis Brasil. Ele foi eleito na década de 1880 em duas legislaturas. E no plano nacional, o partido ainda elegeu Prudente de Morais, Campos Salles e mais um outro. Foi pouca gente. Creio que não passaram de cinco.
RH Então, como se deu a República?
PB Por decreto, como desfecho de uma série de acontecimentos. Veja bem, o marechal Deodoro e o Gaspar Silveira Martins eram desafetos. Hoje, sabe-se que havia no meio deles uma saia. Deodoro, amigo do imperador, concordou em participar da quartelada apenas para depor o gabinete de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o visconde de Ouro Preto [junho a novembro de 1889]. Agora, quando soube que seu inimigo Gaspar Silveira Martins deveria substituir o visconde, não pensou duas vezes antes de decretar a República e a deportação de Ouro Preto, seu irmão Carlos Afonso e Silveira Martins. O Rui Barbosa, que era o ministro da Fazenda, levou a Deodoro documentos concedendo pensão pecuniária para os três políticos deportados. O marechal assinou dois deles. Um está arquivado, na Casa de Rui Barbosa e sem assinatura.
RH Isso não causou um certo mal-estar?
PB o partido Republicano era minoritário. Embora viesse crescendo especialmente depois da Abolição, quando elementos numerosos do Partido Conservador passaram a apoiar os republicanos. Mas a maior desgraça da República foi a fraude eleitoral institucionalizada.
RH Como assim?
PB Decretada a República, entrou em vigor a lei eleitoral promulgada pelo Cesário Alvim, então ministro do governo provisório. Esta lei consagrou, vamos dizer assim, a mais perfeita organização da fraude conhecida, vigorou até 1930. A República viveu 40 anos sob eleição falsa, com uma representação mentirosa. Esse foi o desastre da República. E seguiu assim até o Assis Brasil, que gastou o seu latim para mostrar que era preciso sanear o voto e a eleição. Afinal de contas, era preciso salvar as instituições democráticas. Mas só em 1932 o Código Eleitoral foi efetivamente transformado. As eleições no Brasil tinham o modelo das eleições inglesas, que eram horrorosas, fora a de 1832. Isso porque na Inglaterra a compra das cadeiras era permitida, reconhecida e praticada.
RH E a opção pelo regime presidencial?
PB Isso é curioso. A República adotou o regime presidencial sem que ninguém tivesse defendido o regime presidencial anteriormente. Ninguém discutiu o assunto. Acho que faz parte do processo político brasileiro. As nossas instituições foram se aperfeiçoando progressivamente até o advento da República.
RH Poderia dar um exemplo?
PB Durante o Primeiro Reinado, D. Pedro I começou a encontrar resistência na Câmara. Ele decidiu organizar um ministério que representasse a maioria da Câmara e com a qual ele pudesse governar. Pouco tempo depois, mandou os ministros para casa e nomeou um outro ministério. Essa foi a desgraça dele. Houve forte reação. Ele teve que renunciar e voltar para Portugal, onde continuou a sua vida romântica, política e militar. Com a Maioridade, o primeiro gabinete formado era comandado por Antônio Carlos. Bom, durou pouco. Os gabinetes eram todos realmente escolhidos pelo imperador. Em um momento de dificuldade, D. Pedro II convidou um político para ser o ministro. Este agradeceu e disse que não sabia “quem vão ser os meus companheiros”. O imperador, ainda muito moço, perguntou se ele aceitaria o convite se escolhesse seus amigos.
RH Era como o primeiro-ministro do regime parlamentarista?
PB Exatamente. Sem tocar na Constituição em 1847 uma lei foi criada a figura do presidente do Conselho de Ministros. E então ele começou a funcionar também como alguém que representava. Ele era o chefe do governo . O imperador era o chefe do Estado. Em 1857 foi firmado o princípio de que o gabinete deveria responder pelos seus atos perante a Câmara, e não o Senado. Por quê? Porque o Senado era vitalício e a Câmara era temporária. O gabinete respondia para alguém que também podia ser dissolvido O que não acontecia com o Senado. Como era vitalício, não havia dissolução. Sem mudar uma vírgula na lei, uma inteligência nova abriu margem a práticas também novas.
RH Essas evoluções se deram, então, pura e simplesmente por necessidade?
PB Sim. As coisas aconteciam de forma consuetudinária, no sentido da responsabilidade do Poder Executivo. O caso do grande jurista Lafaiete Rodrigues Pereira é exemplar. Em 1883, ele foi nomeado presidente do Conselho. Um dia, ele escreveu uma carta ao seu ministro da Guerra, Rodrigues Junior. Segundo Lafaiete Rodrigues, o ministro da Guerra não tinha competência para permanecer no cargo, e por isso pedia a sua demissão. Rodrigues Junior resolveu apelar para o imperador, uma vez que, pela Constituição, ao Imperador competia nomear e demitir livremente os ministros. E D. Pedro II respondeu que, fazia muito, havia transferido aquela atribuição ao presidente do Conselho. Sem nada escrito.
RH A República iria mudar isso.
PB Pois é. Esse sistema já estava solidificado quando a República foi instaurada. E ela vem e introduz o regime presidencial puro e simples. Os nossos presidentes fizeram o que quiseram durante 40 anos. Ou seja: ao longo do período imperial, o país foi construindo instituições com um espírito progressivo e evolutivo. Esse processo foi interrompido com a República. Isso, sem contar as fraudes nas urnas. Não havia Justiça Eleitoral. A República era mais nominal do que real. E isso tudo ocorre com a influência do apostolado positivista, que defendia a ditadura chamada “científica”. Essa influência foi grande, especialmente no começo da República.
RH Essa mancha das fraudes ainda permanece?
PB Bom, depois do voto secreto, da representação proporcional, a eleição ganhou outra seriedade. Outras medidas se seguiram, a cédula oficial, o acesso ao rádio e televisão, a eleição computadorizada, sob o ponto de vista eleitoral o progresso é inegável. Mas só a eleição não basta. O impeachment, por exemplo, que era consagrado, nunca funcionou. Veio funcionar agora no caso do Collor, na minha interpretação, em virtude da televisão, que encampou o processo.
RH O povo brasileiro tem mecanismos para uma participação política efetiva no Estado?
PB Essa participação é hoje maior do que era, mas é ainda limitada. Os partidos políticos foram excluídos em primeiro lugar no ano de 1965, sob a alegação falsa de que havia grupos em demasia. Havia e não havia. Eram 14 partidos, mas somente cinco tinham realmente poder. Agora, mais importante do que isso: dois meses antes da extinção dos partidos, tinha sido aprovada uma lei chamada Estatuto dos Partidos Políticos, que consagrou o que hoje se denomina “princípio da cláusula de barreiras”. Este princípio determinava que o partido que não faz tantos por cento de votos seriam dispensados. Nas eleições seguintes, aqueles 14 partidos ficariam reduzidos, na melhor das hipóteses, a cinco ou seis. As agremiações foram diminuindo a ponto de a oposição terminar majoritária, em 1974. Aquilo foi um alerta.
RH E o que foi feito?
PB Eles fizeram o mais fácil: abriram a porteira. Os partidos cresceram e proliferaram. Bastava botar um folheto em um tabelionato e entregar na Justiça Eleitoral. Isso foi uma desgraça. Partido não se faz assim de uma hora para outra. Partido é um ser vivo. E eu não conheço nenhum ser vivo que tenha nascido adulto, grande, gordo e forte. Agora, aqui o partido tinha de nascer grande, musculoso, viril. Isso é fácil. Por isso, digo que os partidos deixaram de existir no Brasil. O que nós criamos, por necessidade, foram meras legendas.
RH Como o senhor entrou na vida política?
PB Eu participo da vida pública desde estudante. Já fazia parte do Partido Libertador. E foram os líderes do partido que resolveram me eleger. Eu não tinha expressão eleitoral. Fui eleito nas eleições de 1954, logo depois do suicídio de Getulio Vargas.
RH Como viveu o golpe de 1964?
PB Eu era deputado estadual. Em 1967, comecei a fazer parte do Congresso como deputado federal. A Arena tinha a maioria. Mas houve um processo de cassação de mandatos muito grande. Em 1968, depois do AI-5, houve uma segunda safra. E aí, sim, a oposição ficou muito reduzida. Muita gente de peso foi afastada e criou-se uma situação de ceticismo e desesperança. Aquele foi um período melancólico A eleição seguinte foi ainda mais triste. Nessa época, voltei ao Sul para ser professor, mas o reitor me proibiu de lecionar. Eu já estava inscrito para fazer concurso da cátedra, com tese apresentada e com candidatura aceita pela Congregação.
RH Quando retornou à vida política?
PB Em 1974, como senador. Era a época do governo Geisel. O país já mostrava sinais de abertura. Os partidos seriam extintos mais uma vez para diluir o MDB Eu mesmo fui candidato à vice-presidência em uma chapa com Euler Bentes, em 1978.
RH Vocês tinham chance de ganhar?
PB Nenhuma. Do outro lado, havia o Figueiredo. Nós sabíamos que não tínhamos chance. Quando foi proibido o acesso à televisão, eu propus que os candidatos da oposição renunciassem. Afinal, sem a televisão a eleição não seria a mesma. Mas o general Euler não quis.
RH O senhor estava no Tribunal quando Fernando Collor foi eleito?
PB Sim. Eu confesso que duvidava da possibilidade de um impeachment. Não se brinca com impeachment. Eu tenho até um livro sobre o assunto. É a minha tese do concurso para a cátedra da faculdade. Só que tinha sido escrito 20??? anos antes do caso Collor.
RH A juventude de hoje ainda tem vontade de participar da política?
PB Quando eu era estudante, acompanhava os debates da Constituinte de 1946 pelos jornais. Como o Jornal do Commercio era muito mais rico no seu noticiário, publicava inclusive discursos inteiros e pareceres das comissões completos, eu resolvi fazer a assinatura. Hoje, os jornais não publicam uma palavra sobre o que o Congresso, Câmara e Senado fizeram. Não publicam sequer se houve sessão no dia anterior . O Congresso trabalha em um regime de censura jornalística.
RH Isso de certa forma contribui para o desinteresse dos jovens?
PB Claro. Contribui para o desinteresse de todos nós. Não é de agora. Faz muito tempo. Vários antigos parlamentares me dizem: “Não há mais discurso na Câmara”. Discursar para quê? Para quem? Otávio Mangabeira dizia que se você faz uma coisa em matéria política e não foi publicado, você não fez. Então...
Paulo Brossard
Marcello Scarrone