Perfeita união

Maria de Lourdes Viana Lyra

  • Ninguém sabe quem o esculpiu nem quando foi feito, mas poucos deixam de perder o fôlego diante da beleza do colar que, segundo a tradição, pertenceu à imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro I. Elaborado para simbolizar a unidade das províncias e a riqueza do Império brasileiro, o adereço é valioso e admirável pelo seu desenho detalhado e único. Rico e poderoso, integrado e harmônico: o colar representava a imagem de grandeza do Império que se desejava divulgar.

    A jóia é um testemunho da dedicação da imperatriz, nascida na Áustria, ao Brasil, sua segunda pátria. Mas não há qualquer referência ao colar na documentação da época, nem sequer uma única imagem da imperatriz usando-o como adorno. Apesar de não haver pinturas ou gravuras que mostrem o adereço no pescoço de D. Leopoldina, confirmando assim que pertencia a ela, o empenho da imperatriz em momentos decisivos do processo da independência brasileira leva a crer que essa jóia carregada de tanto simbolismo tenha sido realmente criada para representar uma prova de reconhecimento dos políticos da Corte do Rio de Janeiro defensores da autonomia do Reino do Brasil a D. Leopoldina. Ao lado do marido, a imperatriz atuou com firmeza e notável desenvoltura em negociações políticas, assumindo posições firmes e intermediando a ajuda estrangeira na luta pela autodeterminação do Brasil. Escrevendo ao amigo alemão Schäffer, que viajara à Europa a fim de contratar soldados mercenários para virem lutar em defesa do Brasil, ela chega a confessar que “o príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria”, e acrescentando: “Só desejaria insuflar uma decisão mais firme”. E em carta ao pai, o imperador da Áustria, comenta que “seria a maior ingratidão e o mais grosseiro erro político se todos os nossos esforços não tendessem a garantirmos uma justa liberdade, consciente da força e grandeza deste belo e florescente império", ao mesmo tempo em que lhe transmite a confiança no “auxilio do vosso poder e força nesta emergência”.   

     A jóia é constituída de um colar e um par de brincos em ouro filigranado, esmalte, esmeraldas e rubis orientais, formados por dezenove contas que representam as dezenove províncias que integravam o Império do Brasil no século XIX. As dezessete contas do colar têm a forma da esfera armilar (símbolo da monarquia portuguesa com conotação imperial), catorze delas sendo dispostas em dois segmentos e interligadas por dois ramos, um de café e outro de tabaco. Cada uma das contas é envolta por faixas zodiacais, esmaltadas em branco, onde aparece gravado em itálico o nome de cada província, a saber: à esquerda, do fecho para o centro – Pará, Goiás, Ceará, Alagoas, Santa Catarina, Grão Pará, Pernambuco; e à direita, no mesmo sentido – Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe, Rio Grande de São Pedro, Espírito Santo, Bahia. No centro do colar, uma face da coroa imperial cravejada com dezenove esmeraldas e dezessete rubis, com um pequeno globo e uma cruz com uma esmeralda incrustada, de onde pendem três contas representando as províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, igualmente interligadas por ramos de café e tabaco, atados pelo laço nacional, em ouro cinzelado. O par de brincos reproduz, na parte superior, a face da coroa imperial, de onde pendem as contas, também na forma da esfera armilar, as quais, envoltas por faixas zodiacais em esmalte branco e entremeadas por ramos de café e tabaco, representam as províncias do Maranhão e do Mato Grosso.

    A metáfora é perfeita: os elos da corrente que encadeia as contas são os responsáveis pela unidade harmoniosa do adereço, assim como o Império do Brasil – opulento, coeso e poderoso – se fundamenta na união estável das províncias. O colar traduz com muita clareza a imagem de opulência do império que então se constituía; nada mais emblemático para ser tomado como modelo de uma jóia imperial.

  • Metal nobre e pedras preciosas são as matérias-primas da representação das ricas províncias, por sua vez enlaçadas por ramos de dois produtos agrícolas vitais para o dinamismo do comércio exportador naquele momento: café e tabaco. O primeiro, que já despontava com sinais promissores na taxa de exportação e começava a desbancar o açúcar, até então símbolo da riqueza nacional. E o segundo, como afirmara já no século XVIII o jesuíta Antonil, tornara o Brasil “afamado em todas as quatro partes do mundo” e passara “pouco a pouco a ser um dos gêneros de maior estimação que hoje saem desta América Meridional”, servindo também como moeda na compra de escravos na África.

    A disposição das contas obedece à ordem de importância político-econômica de cada uma das províncias do Império. Seguindo essa hierarquia, as três principais – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – aparecem em destaque, formando o núcleo central da jóia, tendo no meio a representação da Corte imperial. As contas estão atadas aos ramos de café e de tabaco para dar sustentação à coroa imperial. As províncias da Bahia e de Pernambuco, que iniciam, a partir do centro, os dois segmentos do colar, representam, junto com o Rio de Janeiro, as três maiores receitas do Império nessa década de 1820. Essas duas províncias eram tradicionais produtoras de açúcar, mercadoria que ainda ocupava o primeiro lugar na taxa de exportação.

    O que chama a atenção na composição do colar é o fato de não se tratar de uma simples cópia das divisas nacionais, representadas alegoricamente em uma valiosa jóia. O mais extraordinário é que o desenho cuidadoso dos elementos emprestados das armas do Império e dos principais produtos da economia traduz com clareza a mensagem política tomada como dogma naquele momento. A união das províncias era a força que sustentava a monarquia e o nascente Império do Brasil. Também chama a atenção a utilização de esmeraldas e rubis, pedras de forte simbolismo e grande fascínio sobre os homens – sempre presentes nas alegorias e visões paradisíacas.

    A joalheria era uma atividade em expansão no Brasil naquele início do século XIX. A transferência da Corte portuguesa em 1808 e a conseqüente abertura dos portos do Brasil foram fatores determinantes para o dinamismo do comércio e a produção local, atraindo gente de todas as nacionalidades para o novo centro do império. Joalheiros e ourives famosos pela criatividade artística, instalados não só no Rio de Janeiro, mas também em Minas Gerais, na Bahia e em Pernambuco, confeccionavam com perfeição coroas, colares, brincos, medalhões, braceletes, fivelas, botões e presilhas, em ouro e pedras preciosas, além de caixas de rapé e pó-de-arroz, objetos de mesa para as famílias da aristocracia e peças sacras para as igrejas. A escritora inglesa Maria Graham (1785-1842) nos fala da “abundância de jóias de cabeça e pescoço nas mais velhas senhoras portuguesas”. Muitos outros viajantes descreveram o gosto por peças luxuosas, como “baixelas pesadas” e “jóias maciças”, nas reuniões sociais. Era comum, também, o uso de efígies de D. João VI, de D. Pedro I, da imperatriz Leopoldina, nos mais diversos adereços.

  • No colar da imperatriz, a analogia entre a sua criação estética e a composição política do Império do Brasil é explícita e muito forte. A interligação das contas-províncias feita por ramos de café e tabaco sustentando a unidade do todo transmite com clareza a tônica do projeto político para a construção do Estado imperial brasileiro. A imagem simbólica de um Império forte e esplendoroso representado na forma de uma jóia ricamente confeccionada desvenda mitos, crenças, utopias e projetos políticos em voga na época, revelando a grande expectativa quanto ao futuro do Brasil.

    Maria de Lourdes Viana Lyra é professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sócia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e autora de A utopia do ‘poderoso império’ – Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798 – 1822. (Sette Letras, 1994) e de O Império em construção: Primeiro Reinado e Regências (Atual, 2000).