Um leitor acaba de acordar, abre o jornal e se assusta ao ver, na primeira página, uma charge enorme intitulada “perfis portugueses”, com desenhos grotescos e legendas ofensivas. Várias perguntas lhe vêm à mente. O editor enlouqueceu? Será que ele não sabe que existe uma legislação antirracismo? Ou resolveu abdicar do que seria politicamente correto e extravasar todo o seu preconceito?
Se hoje essa cena seria insólita, nos idos de 1890 ela não só era possível, como bastante comum. O século XIX, dominado por teorias racistas, por doutrinas nacionalistas e marcado pela ascensão dos ideais republicanos, se encaminhava para o fim quando, em meados de 1894, um jornal intitulado O Jacobino foi lançado no Rio de Janeiro. A Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional tem aproximadamente 100 edições do diário – cerca de 60 estão microfilmadas –, que circulou até o final de 1897.
Ligado ao movimento jacobino que atuou na capital federal no mesmo período – cujo discurso ferino o associava aos jacobinos que foram responsáveis pelo momento de maior radicalização da Revolução Francesa, no século anterior –, o jornal cultuava os valores da nascente República e a personalidade do marechal Floriano Peixoto (1839-1895). Ao mesmo tempo, ele pregava o ódio à herança colonial e monárquica, e, por extensão, um antilusitanismo radical motivado pela instabilidade do sistema político vigente e pelo receio de que a monarquia – identificada como herança portuguesa – voltasse, segundo um artigo da historiadora Amanda Muzzi publicado na revista Estudos Históricos. Para ela, esse sentimento de repulsa aos portugueses não só popularizou o movimento jacobino, como também se revelou a marca principal do jornal. Estigmatizados como exploradores, pouco higiênicos, ignorantes, fisicamente grotescos, e ainda considerados os principais responsáveis pelo desemprego dos brasileiros na época, os imigrantes lusitanos eram o alvo predileto da ira do jornal.
Editado por Deocleciano Martyr, conhecido militante jacobino, o jornal não tinha colunas fixas em suas quatro páginas, embora apresentasse uma estrutura semelhante em todas as edições. Normalmente, um texto panfletário contra a monarquia ou contra quem atacasse a República ia para a capa, os ataques antilusitanos estampavam as duas páginas seguintes e o verso do jornal se valia de anúncios para divulgar aqueles que apoiavam o movimento jacobino. De vez em quando, charges apareciam na primeira página, e alguns artigos centravam fogo contra periódicos concorrentes, como a Gazeta de Notícias, O Estrangeiro e O Paiz, apontados como aliados dos portugueses.
Insinuações preconceituosas a respeito da idoneidade do povo lusitano eram constantemente difundidas: “Por que será que todo português que foi tesoureiro da irmandade da Penha tem dinheiro?” Em outras passagens, fica claro que o jornal se ressentia da prosperidade dos lusos e do seu trabalho no Brasil, como se vê na charge “Imigração portuguesa”, publicada no número 9, de 13 de outubro de 1894, que, de forma deturpada, descrevia o movimento migratório lusitano em três imagens. A primeira delas mostrava um jovem com uma mochila nas costas que dizia: “Eu bim axim”. Na segunda, um homem gordo de meia-idade, em frente a um bar, confessava que “Xiguei a ficari axim”. E na terceira, um homem idoso, de fraque e cartola, admitia que “I bou-me axim”.
O editor de O Jacobino costumava celebrar qualquer desgraça que se abatesse sobre os portugueses. “Por telegramas recebidos nesta capital, consta ter naufragado nas costas de Gibraltar um navio português que para o Brasil trazia 1.273 imigrantes de Portugal! A ser verdade, o que desejamos, que previdência! Safa! Que eram mais 1.273 exploradores que íamos ter.” Por vezes, o preconceito chegava ao limite do grotesco: “Está provado que o português é estúpido por índole, velhaco por instinto e porco por natureza”.
A publicação de O Jacobino demonstra que a xenofobia chegou a ser uma prática socialmente aceita durante um determinado período da História do Brasil e evidencia a capacidade que a cultura de massa tem de veicular e legitimar estereótipos de certos grupos de imigrantes. A receptividade do jornal pode ser percebida como um vestígio das tensões que as diversas comunidades de imigrantes – não só portugueses, mas também espanhóis, italianos e libaneses – enfrentaram quando tentaram se integrar à nação brasileira.
Piada de português
Pedro Lapera