A Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, inaugurada em 1979, é um edifício em forma de cone com mais de cem metros de altura. Para um religioso, a altura superlativa pode dar a impressão de deixá-lo mais perto do Paraíso. No entanto, numa madrugada de 1998, um rapaz subiu ao topo do templo por razões nada ortodoxas: para deixar sua marca no edifício. Quando o cônego Haroldo Ribeiro despertou na manhã seguinte, deparou-se com uma enorme pichação no alto da igreja e outra na base da estátua do papa João Paulo II. O padre não quis classificar a ação como uma agressão ao catolicismo: “Essas pessoas querem aparecer, e a Catedral é um prédio de destaque no Centro do Rio.”
A Catedral não é o único edifício histórico vitimado pelo vandalismo na antiga capital do país. A Sala Cecília Meireles, onde acontecem importantes concertos de música clássica, tem uma série de pichações em seu topo – inclusive uma em que se lê “Paz para o Rio”. Outro teatro, o João Caetano, tem pichações na estátua que fica em frente. A poucos metros, a Igreja do Santíssimo Sacramento tem a sua cúpula pichada por torcidas organizadas de futebol e por um grupo que se auto-intitula “conexão fumaça”. Nem mesmo o Cristo Redentor escapou ao vandalismo: em 1991, dois jovens vieram de São Paulo ao Rio só para marcar a estátua. Não contentes, ainda largaram as passagens de ônibus aos pés do Redentor, para que fossem identificados e aparecessem nos principais jornais do país. Como no caso da Catedral, o bem histórico foi pichado por causa da visibilidade que proporcionava.
O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, autor da dissertação de mestrado “De rolê pela cidade: os pichadores em São Paulo”, na USP, diz que, muitas vezes, os bens históricos são escolhidos como alvos de pichação justamente porque atraem a atenção da imprensa:
– Se você picha um edifício residencial, por exemplo, este fato vai ser notícia para um grupo restrito de pessoas. Mas se a pichação é em uma estátua ou em um edifício tombado, a relevância passa a ser muito maior. Assim, a mídia se interessa, publica a notícia e a pichação é conhecida pela cidade inteira.
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Pereira diz que, para a maioria dos pichadores, os bens históricos são vistos apenas como “mais um espaço passível de ser pichado.”
– Esses jovens vêm da periferia e não reconhecem os imóveis centenários como algo de valor para eles, até pela falta de educação, fruto da precariedade das escolas públicas. Alguém pichou a Sala Cecília Meireles, mas será que o pichador sabe quem foi Cecília Meireles? Outra pessoa pichou a efígie de João Caetano, mas será que eles conhecem o trabalho desse ator? O que motiva essas pessoas a pichar monumentos é a visibilidade: quanto mais arriscada, mais valor tem a pichação.
O historiador Paulo Knauss, autor dos textos “Grafite urbano contemporâneo” e “O spray faz diferença”, concorda com Alexandre, dizendo que a polêmica gerada pelo local da pichação “acentua a busca de visibilidade”. Mas ele vai além, afirmando que os monumentos históricos também atraem os pichadores por possuírem um diferencial em relação aos edifícios modernos: a pedra.
– O grafite, sobretudo na versão dos pichadores, procura suportes que garantam a sua perenidade. Por isso, as assinaturas e marcas terminam se inscrevendo em monumentos de pedra. Os pichadores buscam a qualidade material do suporte para garantir a durabilidade da inscrição, e a porosidade da pedra é ideal.
Knauss aponta também algumas diferenças entre o universo dos pichadores e o dos grafiteiros, dizendo que há “uma lógica entre feio e bonito”: -
– A pichação se instala onde a cidade é bonita, arrumada. Ao contrário do grafite, que tende a buscar lugares desprezados. Isto faz parte de uma lógica de abordar e provocar a cidade. Picha-se o que é bonito e se grafita o que é feio. Assim, essas duas formas de expressão exercitam suas críticas urbanas e denunciam a lógica da cidade. Todas as imagens são modos de projetar a presença humana na paisagem.
No Rio de Janeiro, a Fundação Parques e Jardins, subordinada à prefeitura, instituiu o programa “Pichou, limpou”, que desde 1997 faz a limpeza de monumentos históricos no Centro e na Zona Sul, áreas nobres da cidade. Em 2006, a área de preservação foi ampliada, passando a englobar regiões menos favorecidas, como as Zonas Norte e Oeste.
Presidente da Fundação Parques e Jardins, Vera Dodsworth diz que há um certo padrão sazonal na escolha dos bens históricos pichados:
– Por exemplo: 20 de novembro é o dia em que se homenageia o líder negro Zumbi dos Palmares. Então, já é “clássico” que sua escultura seja pichada alguns dias antes.De fato, foi o que aconteceu, mas com um mês de antecedência. Em 17 de outubro de 2006, a estátua de Zumbi amanheceu pichada. A tinta foi removida no mesmo dia, mas a tradição predatória permaneceu: em 1998, a imagem havia sido pichada 23 vezes.
Pichação em monumentos históricos
Roberto Kaz