Pinga-fogo

Karoline Carula

  • Domingo, 11 horas da manhã. Pátio de uma escola em bairro nobre do Rio de Janeiro. Um consagrado homem da elite letrada, carregado de livros e anotações a tiracolo, sobe no tablado a fim de falar para cerca de 200 pessoas – todas bem vestidas e compenetradas. Tem início mais um ciclo de debates. Estamos nos anos 70. Do século XIX.

    Tratava-se de mais uma edição das Conferências Populares da Glória. Os eventos, realizados na escola pública primária da Freguesia da Glória (atual Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado), ocorriam duas vezes por semana (quintas e domingos) e tinham como objetivo a instrução do povo. Na prática, serviram de palanque para reivindicações sociais e políticas, e foram o epicentro da propagação de novas idéias científicas.

    Pertencer ao mundo civilizado (leia-se Europa) era o que mais desejava boa parte da elite brasileira naquele momento. E a ciência era considerada o veículo indispensável para conduzir o país rumo à civilização. Era preciso informar-se e pôr em debate as pesquisas e tendências de várias áreas do conhecimento. Com estas idéias na cabeça, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e conselheiro do Estado Manoel Francisco Corrêa (1831-1905)  deu início às Conferências da Glória, em 1873.

    Na preleção inaugural, Corrêa tratou de avisar que os encontros não contemplariam temas que pudessem gerar polêmica, como política e religião. Parecia mais preocupado em eleger assuntos que fossem bem recebidos pelo público, talvez por serem concebidos como verdades inquestionáveis. Privilegiavam-se debates em torno da cultura (literatura, teatro, história das civilizações, educação, geografia, gramática) e das ciências (matemática, biologia, medicina, botânica, ciências físicas).

    Mas num tempo em que modernas teorias científicas causavam grande controvérsia e impacto social, era impossível evitar que certas discussões virassem polêmica na imprensa. Bom exemplo disso foi o início da difusão do darwinismo no país. Foram as Conferências da Glória que inauguraram o debate público das ousadas teorias biológicas de Charles Darwin (1809-1882). Em 1875, o médico Augusto Cezar de Miranda Azevedo iniciou um conjunto de preleções para divulgar o assunto. O Jornal do Commercio acompanhou a novidade, anunciando a conferência como a exposição de uma “teoria moderna de história natural, que preocupa a atenção dos mais eminentes naturalistas e sábios da Europa e dos Estados Unidos”. Destacar que a teoria já era conhecida naqueles países indicava que ela também deveria ser não só conhecida, mas aceita no Brasil. A contestação veio nas páginas de O Apóstolo, jornal católico, que em 30 de abril de 1875 escrevia: “(...) a hipótese de Darwin não passa de um funesto desvio da razão, que por infelicidade nossa tem sido abraçada por alguns espíritos (felizmente poucos!) cegos à luz da verdadeira ciência, e dos sãos princípios que regem a economia do mundo, gente que só quer aparecer der no que der (...) Ora a célebre doutrina dos orangotangos, o darwinismo (...) deve ser banido da arena das questões sérias!”. Segundo o periódico, por utilizarem mecanismos naturais para explicar o mundo, retirando de Deus o poder da criação e aproximando os homens dos macacos, as idéias darwinistas tinham que ser rejeitadas.

    Embora a entrada fosse gratuita, havia uma seleção prévia do público por meio da distribuição de ingressos, feita pelos próprios oradores e pelo idealizador das Conferências. Um ingresso permitia o acesso de todas as pessoas de uma mesma família. As reuniões funcionavam como um ponto de encontro de membros da elite letrada: políticos, profissionais liberais, estudantes, literatos – gente que aproveitava a ocasião para “ver e ser vista”. O próprio imperador D. Pedro II e sua família compareciam com freqüência, ainda que o governo não patrocinasse o evento.

    A ausência das classes populares no auditório chegou a ser criticada pelos jornais. Em novembro de 1873, o Diário do Rio de Janeiro afirmou que as Conferências da Glória não deveriam se chamar “populares”, mas “científicas, literárias, administrativas, aristocráticas”. Dois anos depois, a Gazeta de Notícias ironizava: “eu calculo que horror não sentiria o auditório destas conferências se fosse sentar um homem de grossos sapatões e com as mãos enormemente calejadas pelo trabalho da véspera!”

    Manoel Corrêa nunca respondeu a essas críticas, provavelmente porque, para ele, ser “popular” não significava incluir classes menos abastadas, e sim tornar públicos os conhecimentos entre a camada letrada, ou seja, divulgar as idéias para quem seria capaz de compreendê-las e absorvê-las. E a partir daí aplicá-las na política e na sociedade. Esse ideal era compartilhado pelos expositores. No fim de sua palestra sobre o darwinismo, o médico Miranda Azevedo afirmou estar convicto de ter prestado um “serviço à pátria e ao povo”. Em 1874, outro orador, o médico Antenor Augusto Ribeiro Guimarães, ofereceu um curso de higiene no qual apresentava estratégias para livrar a cidade dos pântanos. Logo após a preleção, o Diário do Rio de Janeiro recomendou ao ministro dos Negócios do Império que fosse às Conferências a fim de conhecer as soluções para esse problema que tanto afligia a população carioca.

    A composição do auditório variava de acordo com o assunto em questão. Um tema que mobilizava a sociedade brasileira naquela segunda metade do século XIX era a progressiva extinção do regime escravocrata, sobretudo a partir da aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871. Como a produção agrícola se adaptaria à substituição da mão-de-obra escrava pela assalariada? A situação da lavoura brasileira foi o tema das seis exposições do advogado João Baptista da Silva Gomes Barata entre janeiro e fevereiro de 1876. Na platéia, fazendeiros de diversos pontos da província do Rio de Janeiro acompanhavam com atenção. Isso reforça a suposição de que as Conferências teriam utilidade e aplicações práticas para o público.

    Apesar de criticar o caráter elitista das Conferências, a imprensa da Corte também se rendia à importância dos temas ali tratados. Os jornais de grande circulação anunciavam as futuras preleções e depois editavam seu resumo, e algumas vezes reproduziam seu conteúdo na íntegra, além de publicarem artigos, em diversas seções, com comentários sobre as falas. Em resposta à carta de um leitor que, em 1874, pedia a contratação de um taquígrafo para as Conferências, o jornal O Globo foi além: sugeriu que as Conferências se transformassem em publicação periódica. O pedido seria acatado dois anos depois: dois taquígrafos foram contratados e uma revista mensal foi impressa em 1876 com o título Conferências Populares. Até alguns debates realizados antes de seu lançamento foram editados pela publicação. Ao analisar o segundo número da revista, a Gazeta de Notícias a classificou de “indispensável a todos que amam o desenvolvimento intelectual de nossa pátria”.

    Os eventos atraíam um número expressivo de mulheres. Elas correspondiam, em média, a 25% dos presentes – proporção bem maior do que a observada em outros espaços de convivência, como as livrarias, sedes de jornais e bibliotecas. Isto se explica pelo fato de que parte dos assuntos tratados era ligada diretamente ao chamado “universo feminino”, e também à necessidade de as mulheres serem educadas nesses assuntos: a gestação, os cuidados com os filhos, o papel da mãe na família, a mulher no Evangelho etc.

    A crescente repercussão pública desses encontros os transformou, muitas vezes, em palanque político. Em 1880, docentes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, liderados pelo professor Francisco Praxedes de Andrade Pertence (1823-1886), escolheram as Conferências como espaço para reivindicar reformas do sistema de ensino médico e denunciar a falta de infra-estrutura das instituições superiores. Chegaram a pedir contribuições financeiras aos presentes. E as obtiveram, especialmente dos comerciantes presentes.

    Àquela altura, o sucesso das Conferências da Glória já havia inspirado a criação de vários eventos semelhantes. Desde 1877, o Rio de Janeiro abrigava muitas conferências públicas, a ponto de, em um único domingo daquele ano, serem anunciadas cinco preleções diferentes em horários próximos. Assuntos de comoção popular se tornavam motes para as conferências, como aquelas feitas especialmente para angariar fundos solidários para as vítimas de inundações em Portugal e em Campos (no norte fluminense), e das secas do Rio Grande do Norte e do Ceará. Esse tipo de debate público chegou também a outras províncias. Em Minas Gerais, passaram a ser realizadas conferências em quatro cidades – Lavras, São José de El-Rei, Bomfim e Grão-Mogol.

    Precursoras desse fenômeno de disseminação do saber, as Conferências da Glória prosseguiram até o início do século XX. O espaço dessas Conferências consagrou-se, entre 1873 e 1880, como privilegiado para discussões importantes, em especial as relacionadas à ciência. Nesse lugar, conseguia-se a repercussão necessária para a legitimação política de idéias que constituíam parte de um projeto de educação científica.

    Karoline Carula é doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo e autora do livro A tribuna da ciência: as Conferências Populares da Glória e as discussões do darwinismo na imprensa carioca (1873-1880). São Paulo: Annablume, 2009. (no prelo)

    Saiba Mais - Bibliografia:

    CARVALHO, José Murilo. As conferências radicais do Rio de Janeiro: novo espaço de debate. In: (org.) Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

    DANTES, Maria Amélia M. Espaços da ciência no Brasil, 1800-1930. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.

    LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

    Nos bebedouros do saber

    Netas e bisnetas das Conferências da Glória, iniciativas semelhantes pipocaram, nos últimos anos, nas maiores cidades brasileiras, todas em nome da popularização da ciência e da cultura em geral. Dirigidos a um público amplo, em que estudantes e professores se misturam a ouvintes não-especializados, palestras e cursos da Casa do Saber (Rio e São Paulo), da Funarte ou da série Cultura e Pensamentos, ligados ao Ministério da Cultura, e da Casa da Ciência (da UFRJ) aprofundam os conteúdos de várias disciplinas e estimulam o debate.
    Da Literatura à História, da Filosofia à Psicanálise, da Astronomia às Artes Plásticas, o universo do conhecimento é descortinado para o auditório. Se o conselheiro Corrêa procurava não levantar temas polêmicos, como a política ou a religião, embora nem sempre conseguisse, as modernas conferências geralmente aceitam e incentivam a discussão. 

    Os títulos dos encontros sugerem proximidades, mas também diferenças, em relação às preleções imperiais: se ainda ocorrem debates, como nos tempos da Glória, sobre a engenharia dos transportes no Brasil ou sobre o darwinismo, há temas próprios do nosso século, como os fundamentos da bioética, a globalização hoje ou “tudo o que você queria saber sobre o Oscar”.  

    Palestras semanais gratuitas, minicursos pagos, ciclos de debates, oficinas, seminários: o rico e variado leque de oportunidades culturais e científicas está à disposição de todos os tipos de público. Hoje, nem o imperador saberia qual escolher...  
    (Equipe Revista de História)