Pintando o sete

Cláudia de Oliveira

  • Mesmo que alguns documentos possam ser preservados para sempre, muitas vezes a história não enaltece tanto personagens que, embora antenadas com o seu tempo, questionam e rompem com padrões de comportamento. Um desses casos é o da pintora Abigail de Andrade, que, em sua breve existência, viveu com um dos ilustradores mais importantes do século XIX, Angelo Agostini, vinte e um anos mais velho, e com ele teve uma filha em 1888, sem que os dois tivessem casado oficialmente. Apesar de elogiada pela crítica da época, a vida da artista deixou registros que ficam aquém do desejado.

    Abigail de Andrade nasceu em Vassouras em 1864, no seio da aristocracia fluminense, filha dos fazendeiros de café José Maria de Andrade e Maria Carolina de Andrade. Teve também uma irmã, Violeta de Andrade. Lá viveu até 1880, antes de se mudar para o Rio de Janeiro. Nesse início de década, a capital do Império vivia algumas contradições. Ao mesmo tempo em que reverberava as resplandecentes expressões da civilização e da cultura europeias, a cidade abrigava uma sociedade arcaica e escravista. Socialmente, a principal função da mulher era gerar filhos saudáveis, já que sua participação na vida econômica e política da monarquia era praticamente nula.

    A trajetória de Abigail, que morreu aos 26 anos, seguiu na contramão dessa tendência. Embora de raízes vassourenses, ela não estava ligada à elite cafeeira, e sim aos problemas sociais de sua época, como mostram os poucos quadros que pintou em sua carreira meteórica. Esta foi uma das razões para a artista não abraçar o conservadorismo dominante e tornar-se uma exceção entre suas contemporâneas. O pouco que se sabe sobre ela é que morava no Rio de Janeiro com sua tia, Rosa Fernandes de Almada, e não apresentava características que pudessem dificultar sua carreira e a projeção social, a não ser o fato de ser mulher e ter se envolvido com um homem casado, pai de uma filha e conhecido no mundo das artes e da política.

    Assim que chegou à Corte, a jovem se matriculou no curso de pintura do Liceu de Artes e Ofícios, que também funcionava como escola profissionalizante para as classes populares. Sua opção pelo Liceu não foi aleatória, já que não era dada às mulheres a oportunidade de estudar pintura na Academia Imperial de Belas Artes – o que só ocorreria com a chegada da República.

    Foi no Liceu que Abigail e Angelo se conheceram. Na época, ele era proprietário e caricaturista da Revista Illustrada, enquanto ela, recém-chegada, havia acabado de completar 17 anos. Mesmo sendo o ilustrador casado com a portuguesa Maria Palha Agostini, isso não impediu que os dois nutrissem uma intensa paixão, que durou onze anos.

    O italiano Angelo Agostini havia chegado ao Brasil em 1859 totalmente contaminado pelas ideias francesas revolucionárias de liberdade e igualdade, depois de passar a adolescência em Paris durante o Segundo Reinado francês (1852-1870), período no qual a cidade se tornou capital das artes. Agostini era um homem cosmopolita que assumiu uma postura de artista questionador. Sua vivência europeia não se adequava ao provincianismo do Rio de Janeiro da época, ainda marcado pela herança colonial, pela escravidão, por epidemias, pela imprensa pouco desenvolvida e pela vida cultural precária e restrita.

    Em 1882, quando Abigail participou da mostra do Liceu de Artes e Ofícios, Agostini teceu elogios rasgados às suas telas. E repetiu a dose em 1884, quando ela se tornou a primeira mulher a receber uma medalha de ouro na 26a edição da Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes, exibindo seis telas. “Esta Excelentíssima Senhora conseguiu pela perfeição de seus trabalhos (…) chamar a atenção do público e de toda a imprensa, que lhe teceu os maiores louvores. Escusado dizer que não faremos exceção a tão merecidos encômios à jovem e distintíssima artista”, comentou Agostini na Revista Illustrada. A essa altura, os dois artistas já eram amantes, e as palavras elogiosas a Abigail apareciam em páginas da Revista Illustrada ao lado das litografias de Agostini apresentando as obras da artista expostas no Salão, como “O cesto de compras” e “Um canto em meu ateliê”, entre outras.

    A qualidade do trabalho de Abigail começou a repercutir na imprensa em geral, o que a tornou mais conhecida e permitiu que realizasse duas exposições individuais em 1886. O jornalista, crítico e também literato Luiz Gonzaga Duque Estrada (1863-1911) chegou a fazer uma menção à obra da artista em seu livro A arte brasileira (1888): “Começa apenas a mostrar o seu talento (...) e o tem feito por uma maneira um tanto feliz. (…) O seu quadro O cesto de compras é uma promessa de sumo valor”.

    Seu segundo autorretrato, o premiado “Um canto do meu ateliê”, é um bom exemplo a ser estudado quando se pretende investigar a postura da artista. Embora se mostre muito elegante, ela aparece de costas, o que chama a atenção para a dificuldade da pintora em encarar seu público. No quadro, Abigail deixa patente a firmeza de suas mãos brancas segurando o pincel e da mulher que se mostrava como uma profissional nas atividades e intenções. A personagem da tela não está confinada à posição de modelo ou de musa do artista. Ela não é objeto, ícone, motivo ou tema. É sujeito.

    No auge do seu reconhecimento como artista, em 1888, Abigail engravidou de Angelo. Era o motivo que ele precisava para se separar de sua esposa, Maria Palha, e passar a viver com sua amada na Corte, onde o casal ficou até o nascimento da filha, Angelina Agostini, que mais tarde também veio a ser pintora. Apesar da harmonia na intimidade, a vida pública do casal ficou insustentável. Abigail cortou relações com sua família, enquanto maledicências e comentários de toda sorte corriam pelas ruas da cidade. Assim, para proteger Abigail e Angelina, e também, propiciar à companheira o estudo das artes na capital francesa, Agostini partiu com ambas para Paris no final de 1888.

    Lá, Abigail engravidou do segundo filho, e nesse período pintou algumas telas, assim como Angelo. Em uma das pinturas de Agostini, “Atelier”, o espectador se defronta com uma cena da intimidade do casal: ele, bem mais velho, observa atentamente sua parceira e companheira em seu trabalho. Essa talvez seja a única tela em que aparecem juntos.

    Em seu último autorretrato, produzido em Paris, Abigail de Andrade, mais uma vez, não encara o espectador. Ela está com 26 anos. Bem distante da moça de 17 anos que ostentava o olhar esperançoso de um futuro promissor. Longe também da mulher elegante que, aos 20 anos, gozava de plena firmeza em suas atividades e intenções. Na pintura em questão, seus olhos cansados vagam, pesarosos, rumo ao infinito. Dá para ver as marcas que o tempo deixou em seu semblante.

    Em 1889, nasceu em Paris o segundo filho do casal, Angelo, que logo morreu de tuberculose. Abigail ainda participou da Exposition Universelle de Paris de 1889, mas faleceu da mesma doença do filho meses depois. Após sua morte, Agostini voltou para o Brasil com a filha, em 1895.  Impossibilitado de educar sozinho Angelina, então com oito anos, deixou-a aos cuidados de Laura Palha Agostini, sua filha com Maria Palha.

    O ilustrador voltou a colaborar em alguns veículos da imprensa carioca, como revistas da empresa de O Malho. Mas os tempos eram outros. Ele acabou morrendo em 1910, pobre e desamparado. Quatro anos depois, Angelina Agostini, já pintora, voltou para a Europa após receber um prêmio concedido pela Academia de Belas Artes. De volta ao Brasil na década de 1950, ganhou a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1953. Ela morreu no Rio de Janeiro, em 1973, como uma pintora reconhecida, conseguindo se libertar do estigma de ser filha de uma relação de amor tão tempestuosa.

    Abigail e Angelo pagaram um preço extremamente alto por suas escolhas, mas suas vidas podem ser consideradas emblemáticas com relação às lutas que foram posteriormente travadas pelas mulheres ao longo do século XX, fossem elas no campo profissional ou amoroso. O trabalho da artista não chega a ter muita ressonância na atualidade, pois suas telas só foram vistas em 1989, em “O Rio de Janeiro de Machado de Assis”, no Centro Cultural Banco do Brasil, e na exposição “150 anos de pintura no Brasil”, na Galeria Jean Boghici, que reuniu o acervo do colecionador Sérgio Fadel. Em 2004, a mostra “Mulheres Pintoras”, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, também apresentou algumas obras da pintora. Mas pode-se dizer que seu esforço para vencer preconceitos e convenções sociais que acabariam caindo por terra não foi em vão.


    Cláudia de Oliveira é professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coautora de O moderno em revista: representações do Rio de Janeiro de 1880 a 1930 (Garamond/Faperj, 2010).



    Saiba Mais - Bibliografia

    BUENO, Alexei. O Brasil do Século XIX na Coleção Fadel. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Sérgio Fadel, 2004.

    OLIVEIRA. Miriam de. Abigail de Andrade: Artista Plástica no Rio de Janeiro do Século XIX. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes/UFRJ, 1993.

    SIMIONE, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista. Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras. São Paulo: Editora da USP/ Fapesp, 2008.