Pintou um novo país

Valéria Alves Esteves Lima

  • “Enquanto o poder estiver sozinho de um lado, as luzes e a sabedoria sozinhas do outro, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os príncipes raramente farão coisas belas, e os povos continuarão vis, corrompidos e infelizes”. O aviso foi dado em 1750 por Jean-Jacques Rousseau, e o filósofo suíço não era o único a alertar que “poder” e “saber” estão irreversivelmente associados. Naquele momento, a base do pensamento iluminista já ecoava entre grande parte dos dirigentes e intelectuais europeus. Não demorou para que o estreitamento da relação entre política e arte também começasse a ganhar terreno no Brasil. Um dos capítulos mais importantes dessa história foi a organização de uma academia de belas artes.

    A iniciativa estava longe de ser uma unanimidade. Estrangeiros de passagem por aqui ficavam inconformados com o fato de que o governo local se ocupasse com arte e cultura em vez de se dedicar às necessidades básicas da população. Dois séculos depois, muitos ainda podem ter este pensamento em relação ao Brasil atual. Para enfrentá-lo nas salas de aula, é preciso reforçar a ideia de que, no passado como no presente, não se pode entender a arte no país sem vinculá-la à política. E vice-versa.

    Inaugurada oficialmente em 1826, a Academia Imperial das Belas Artes tornou-se a menina dos olhos do governo, servindo aos esforços oficiais para consolidar a Independência e construir um sentimento de nacionalidade capaz de unificar o território. Sua história, porém, começou a ser desenhada mais cedo.

    Em 1808, quando a família real aportou e o Brasil tornou-se sede do império português, uma grande leva de instituições e funcionários do governo também cruzou o Atlântico para se estabelecer no Rio de Janeiro. Pela primeira vez, o Brasil convivia com a presença física de seus máximos governantes e com a sociedade de corte que os acompanhava. A importância da colônia na América para a economia e a administração lusitanas só fazia aumentar. Isso ficou ainda mais evidente em 1815, quando o Brasil teve seu estatuto político elevado à condição de Reino Unido ao de Portugal e Algarves. Sete anos depois, viria a independência.

    Esse contexto de mudanças – apresentado de forma enxuta e didática – precisa ficar claro para que os alunos compreendam o papel político da Academia Imperial das Belas Artes. O pontapé inicial veio em março de 1816, quando chegou aquela que ficaria conhecida como Missão Artística Francesa. Em sua maioria, os membros desse grupo haviam trabalhado para o regime de Napoleão Bonaparte. Um deles, Jean-Baptiste Debret (1768-1848), autor do desenho da bandeira do Império brasileiro, era primo e discípulo de Jacques-Louis David, pintor oficial de Napoleão.

    O governo português enxergou naquele grupo um caminho para semear no país a “civilização” e o “progresso” europeus. A arte trazida e executada pelos pintores, escultores e arquitetos foi imediatamente incorporada ao cotidiano da política monárquica. Retratos, gravuras e pinturas registravam personagens e acontecimentos oficiais. Projetos de cenografia para os eventos reais – como festas de aclamação, aniversários e casamentos – traziam para as ruas cariocas a linguagem artística do neoclassicismo.

    Pouco a pouco, ganhava forma uma história visual da monarquia no país. Apoiado pelo governo, o time de artistas colocou de pé, no reinado de D. Pedro I, a primeira instituição de ensino oficial das artes, sob forte inspiração da academia francesa. Na Academia Imperial das Belas Artes (AIBA) se concentrariam as atividades de ensino e produção artísticas do Brasil imperial.

    Antes mesmo de sua abertura oficial, que ocorreu em novembro de 1826, os artistas já estavam engajados na construção visual da imagem do imperador como garantidor da ordem constitucional. Uma portaria de junho do ano anterior, por exemplo, incumbia o diretor da Academia de confeccionar 16 retratos de D. Pedro I, a serem enviados para palácios do governo em diferentes províncias do Império.

    Em sala de aula, vale destacar que os mecanismos de propaganda costumam ser muito eficientes nas monarquias: o simbolismo do poder real se manifesta por meio de diferentes expressões artísticas. Filmes comoo francês Vatel – Um banquete para o Rei (Roland Joffé, 2000) podem ajudar na compreensão dessa temática.

    Nas obras dos artistas franceses também despontavam a riqueza natural brasileira e os símbolos da civilização europeia erguidos em território nacional. Na trilha de uma produção volumosa, em 1829 e 1830, Jean-Baptiste Debret, que havia se tornado pintor da Corte e professor de pintura histórica, organizou as primeiras exposições de trabalhos na AIBA. Iniciativas que receberam forte impulso durante o Período Regencial (1831-1840), principalmente quando o francês Félix-Émile Taunay (1795-1881) assumiu a direção da Academia, em 1834. Seu pai, Nicolas Antoine Taunay, era um dos membros da Missão Artística Francesa. Durante sua longa gestão à frente da AIBA (1834-1851), Félix-Émile fez o que pôde para estreitar os laços da Academia com o governo. Defendia, por exemplo, que as encomendas de edifícios e obras públicos deveriam ser atribuídas exclusivamente aos arquitetos formados pela instituição. Criou as Exposições Gerais de Belas Artes, realizadas anualmente, e os Prêmios de Viagem ao Exterior (para artistas estudarem na Europa).

    As imagens produzidas sob o selo da Academia podem ser exploradas em sala de aula, por meio de oficinas de análise das obras, incluindo a identificação de seu contexto histórico e comentários sobre os elementos próprios das expressões artísticas. A obra Estudo para desembarque de D. Leopoldina no Brasil, por exemplo, foi produzida por Debret no período joanino, para a chegada da duquesa austríaca que vinha se casar com D. Pedro. Como o Rio de Janeiro era ainda uma cidade com poucos recursos materiais, era crucial o papel dos artistas da Missão Francesa na promoção desses eventos da realeza. Debret usa os códigos neoclássicos para construir essa pintura histórica: simetria na disposição dos personagens, centralização do elemento principal (que não é a princesa, mas D. João, governante do Império português), iluminação equilibrada e realismo ao retratar os participantes do evento.

    Charge de Ângelo Agostini coloca em confronto as telas Batalha do Avaí (1872-1877), de Pedro Américo, e Batalha dos Guararapes (1879), de Victor Meirelles, apresentadas na Exposição Geral organizada pela Academia Imperial em 1879. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)

    Em 1838, quando política e arte já estavam enlaçadas no Brasil, as relações entre governo e instituições artísticas e de ensino ganharam novo reforço com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A instituição realizava pesquisas, organizava viagens de exploração, produzia artigos e debates sobre temas considerados relevantes para a nação. A AIBA e o IHGB tiveram papel crucial nos caminhos do governo. Prova disso é que a classe política era constituída pelos mesmos intelectuais que frequentavam os quadros do Instituto, do qual também faziam parte artistas da Academia. Muitos de seus fundadores, como o cônego Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira e Bento da Silva Lisboa, eram políticos ativos no Império. Mais tarde, Manuel de Araújo Porto Alegre, diretor da AIBA entre 1854 e 1857, seria um dos artistas a integrar os quadros do IHBG.

    Entre 1850 e 1870, a AIBA seguia produzindo obras que serviam à construção de uma identidade para o país. Pinturas exaltavam a exuberância de sua natureza, lida agora através da ótica romântica; obras indianistas reforçavam a figura idealizada do índio como origem da nação; representações oficiais do imperador e de sua família vendiam a confiança no regime monárquico; pinturas históricas tentavam consolidar uma memória das conquistas para conter a crise do Império, como na iconografia da Guerra do Paraguai (1864-1870).

    Chegando ao fim do Império e do século, a Academia também se aproximava do fim de uma época artística. Diante das inspirações que chegavam da Europa, sobretudo o realismo de Gustave Courbet e o impressionismo, cobrava-se da Academia que ela se atualizasse e flexibilizasse as regras do ensino. Acusada de conservadorismo, não parecia mais combinar com a modernidade da República.

    De Academia Imperial, em 1889 passou a se chamar Escola Nacional de Belas Artes (atualmente integrada à UFRJ, como Escola de Belas Artes). Mais uma entre as muitas mudanças que escreveram a história da arte e da política no Brasil.

    Valéria Alves Esteves Lima é professora da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e autora de Uma viagem com Debret (Jorge Zahar, 2004).

    Saiba Mais

    CHRISTO, Maraliz.  “A pintura de história no Brasil do século XIX: panorama introdutório”. ARBOR. Ciencia, Pensamiento y Cultura, vol. 185, n. 740, p. 1147-1168, nov./dez. 2009. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/viewArticle/386.

    DIAS, Elaine. Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

    Internet

    Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais: www.itaucultural.org.br
    Museu D. João VI (UFRJ): http://acd.ufrj.br/djoaovi
    Museu de Arte para a Educação: www.mare.art.br