Demetrius trabalhava pelo menos 10 horas por dia; Geraldo umas 15; Claudionor de 18 a 20. A carga horária assusta, mas para quem trabalhou na construção de Brasília, essa era a regra. Cada um veio de um ponto cardeal diferente. Geraldo é de São João Del Rei, Minas Gerais; Claudionor, de Maceió, Alagoas; e Demetrius... da Grécia. Eles eram três dos cerca de 63 mil operários que ergueram a nova capital federal. Todos tinham um objetivo em comum: melhorar de vida. Para isso, tiveram que viver longe da família e trabalhar de sol a sol.
Claudionor Pedro dos Santos chegou ao Planalto Central em 1957 e faz questão de dizer o dia e o mês: “Foi no dia 23 de dezembro, eu tinha 18 anos”. Ele trabalhava como controlador da equipe da obra do Congresso Nacional e fazia as folhas de pagamento, que era contabilizado por hora. “Recebia uns 8 cruzeiros por hora. Às vezes virávamos a noite trabalhando”, lembra. A pesada carga horária era uma grande dificuldade, mas, segundo Claudionor, o pior era ficar sem lazer: “Você sabe como é... Éramos novos e pra termos um relacionamento, tínhamos que ir de caminhão, de madrugada, para Formosa, Lusiânia ou Anápolis. E quando vinha amanhecendo, já estávamos no trabalho de novo. Isso era às vezes, num domingo ou outro”.
Outra superação que o candango tinha que passar era o clima de Brasília. “Quando chovia, tinha muita lama. Quando fazia sol, era muita poeira. Pra mim, que estava acostumado com Maceió, foi uma dificuldade pra acostumar”.
Tendo como base depoimentos de candangos, a historiadora Cléria Botelho, da Universidade de Brasília, desenvolveu uma pesquisa sobre os canteiros de obras. Para ela, eram espaços de dor. Os trabalhadores saiam de suas cidades com uma mala e pouquíssimo dinheiro. Os alojamentos tinham pouca infraestrutura e os trabalhadores não podiam levar mulheres, nem álcool, e tinham hora de entrada. Isso era amortecido pela esperança que os operários tinham de criar uma nova capital onde houvesse justiça e igualdade. “JK frequentava o canteiro de obras, conversava com eles. Um dos candangos me disse que, como eram de fora, sentiam-se iguais em Brasília. Ninguém era da terra, todos eram forasteiros”, diz Cléria.
O jornalista Vladimir Carvalho ficou 19 anos produzindo o documentário “Conterrâneos – Velhos de Guerra”, sobre os candangos pioneiros, lançado em 1990. A demora do tempo de filmagem não foi falta de tempo nem de dinheiro. O problema era que o assunto que ele pretendia abordar ninguém queria falar: o assassinato de operários, o chamado Massacre da Pacheco Fernandes Dantas. Vladimir ficou sabendo do incidente por acaso, enquanto cortava cabelo numa barbearia. “Fui colhendo informações aqui e ali, mas as pessoas tinham receio de tocar nesse assunto porque vivíamos na ditadura. Diziam, ‘não, doutor, isso é muito perigoso’”.
No final da ditadura, em 1987, muitos operários que tinham se negado a falar com Vladimir foram à sua procura para finalmente dar seus depoimentos. Com isso, o documentarista pode ter mais detalhes. O crime foi o desfecho de um atrito entre operários da Construtora Pacheco Fernandes Dantas e a Guarda Especial de Brasília (GEB), uma polícia contratada pelo governo. Os trabalhadores se revoltaram contra o serviço da cantina. Segundo eles, às vezes a comida vinha com insetos e até estragada. Na segunda-feira de carnaval de 1959, além das condições ruins de alimentação, os operários tiveram a água do acampamento cortada. “Provavelmente fizeram isso para que ninguém fosse às cidades do entrono para as festas de carnaval”, conta Vladimir.
Resultado: os trabalhadores jogaram os pratos de comida no pátio, em protesto. A GEB tentou contê-los, mas não conseguiu porque os trabalhadores eram muitos, mais de mil. “Foi uma confusão, mas a GEB perdeu esse round e correu para o quartel. À noite, os guardas voltaram e metralharam o acampamento. Muita gente morreu, mas não se sabe quantos porque o caso foi abafado”, conta Vladimir.
No documentário, um dos entrevistados pelo jornalista descreve como os corpos “desapareciam”: “O caminhão levava, estes caminhões de caçamba, levavam e viravam assim os corpos, alguns ainda vivos, se mexendo. E um tratorzinho da Novacap (empresa criada para gerenciar a construção) aterrava, jogava terra em cima. O trator já ia tampando pra não deixar exposto. Na torre da televisão. Em outros lugares também, mas ali eu vi de perto”.
Em “Conterrâneos”, o arquiteto Lúcio Costa foi questionado sobre o assunto: “Que importância o senhor daria a isto se tivesse sabido na época da construção de Brasília?”. Costa responde: “Não teria dado a menor importância. Do ponto de vista da construção da cidade, isto é apenas um episódio. Não tem a menor importância”.
Apesar do filme, hoje muitos pioneiros ainda evitam falar desse assunto. Claudionor diz que “nunca foi confirmado se houve morte ou não”. Geraldo Resende de Carvalho trabalhou na cantina da obra do Palácio do Planalto, lembra do episódio e prefere chamá-lo de rebelião. “Sei que a GEB chegou a prender algumas pessoas”, diz Geraldo. E só.
Existem casos pontuais de repressão fora do caso do acampamento da construtora Pacheco. Eram presos os que eram pegos bebendo ou então na área boêmia de meretrício. “Eles sempre estavam se escondendo dos policias da GEB, principalmente nos finais de semana para que eles não fossem pegos”, conta Cléria Botelho. Outra atribuição da GEB era a divulgação dos acidentes de trabalho. Segundo a historiadora, os dados oficiais eram bem menores que a realidade. “Se num prédio morriam 8 ou 10, saia a informação que eram 2 ou 3”.
Com a inauguração da cidade em 21 de abril de 1960, os acampamentos se concentraram numa mesma área, a Vila Planalto. Vinte e duas companhias de construção civil estavam instaladas no local, próximo à Praça dos Três Poderes, do Palácio da Alvorada e do Palácio do Planalto, ou seja, no centro do Plano Piloto. As casas eram de madeira. Hoje a Vila é bem menor que nos anos 1960 – restou a área de apenas seis construtoras – e muitas casas já foram modificadas, ganharam alvenaria, muros e algumas viraram chácaras. A população também mudou. Muitos pioneiros se mudaram. Hoje com 78 anos, Geraldo ainda mora lá, só que com a família. E continuou no ramo: é dono do Armazém do Geraldo, o popular comércio da Vila Planalto.
Demetrios Karaziannies foi outro exemplo de operário que permaneceu em Brasília. Ele chegou à Planalto Central em 1958, com 25 anos, e trabalhou na construção do Palácio da Alvorada, do Congresso e de quatro ministérios. As funções foram várias, entre elas, a carpintaria. Hoje é comerciante e mora no Lago Norte, área nobre de Brasília.
Mas nem todos os candangos continuaram na cidade. Não há uma estatística que diga quem voltou para sua terra e quem ficou. “Em Brasília eles aprenderam um ofício e tornaram-se mais conscientes. Muitos dos que retornaram, formaram as ligas camponesas do nordeste, que mais tarde veio a ser o Movimento dos Sem Terra. Depois do massacre, os candangos criaram o primeiro sindicato da construção civil”.
Os que ficaram na capital contam hoje com dois espaços onde podem rememorar os primeiros anos na cidade: o Clube dos Pioneiros e a Associação de Candangos Pioneiros. Lá, eles se reúnem em jantares, produzem jornais e recordam histórias do tempo em que criaram Brasília. Não tem uma vez que Claudionor passe em frente ao Congresso Nacional e não se emocione. “É que eu ajudei a fazer aquele prédio”, explica, como se fosse preciso.
Pioneiros da capital
Vivi Fernandes de Lima e Adriano Belisário