Piquetes pioneiros

Marco Aurélio Santana

  • Sem muito alarde, completa 30 anos um dos momentos inaugurais da redemocratização do Brasil.

    Em plena ditadura, assembléias lotadas de operários se insurgiam contra o “roubo” que patrões e o governo promoviam em seus salários e seus direitos. Numa afronta à lei, as greves se espalharam, mobilizando milhares de pessoas. Nascia o “novo sindicalismo” e despontava um ator fundamental para o período democrático que estava prestes a se iniciar: a classe trabalhadora.

    Em meados da década de 1970, o regime militar vivia um momento complicado. No plano econômico, o esgotamento do “milagre brasileiro”, precipitado pela alta internacional dos preços do petróleo. No plano político, a acachapante derrota para o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nas eleições de 1974. Era hora de rever as estratégias. Para garantir a sobrevivência do regime, o novo governo, sob o comando do general Ernesto Geisel (1974-1979), propõe uma “abertura” política. Com a condição explícita de que ela deveria ser “lenta e gradual”.

    Mas a sociedade não parecia disposta a agir de acordo com os planos dos militares. Num ambiente de efervescência, surgem novos espaços de participação política, mobilizando grupos de estudantes, mulheres e associações de bairros. São os primeiros passos para a redemocratização, que aceleram a crise do regime. Entre esses movimentos sociais, o dos trabalhadores teve papel de destaque.

    O coração da indústria nacional localizava-se no ABC paulista. A sigla reúne as iniciais dos santos que batizam os três principais municípios da região: Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. Desde o início dos anos 1970, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, dirigido por Paulo Vidal, vinha promovendo uma série de campanhas na tentativa de ao menos refrear o arrocho salarial e a exploração no trabalho. Mas a atuação da entidade era contraditória. Ao mesmo tempo em que se desvinculava da Federação dos Metalúrgicos de São Paulo buscando desempenho autônomo, desestimulava greves e paralisações. Em 1974, o I Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo define as reivindicações futuras da classe: pela liberdade e autonomia sindical, por uma lei básica do trabalho que contemplasse os seus direitos fundamentais e pela contratação coletiva.

    É sob essas orientações que Luiz Inácio da Silva, o Lula, chega à presidência do sindicato no ano seguinte. Intenções que não se fizeram notar nas primeiras campanhas salariais de sua gestão. As negociações costumavam resultar em simples validação dos índices oficiais de reajuste salarial.

        Um fator determinante para insuflar o movimento foi a revelação, feita pelo Banco Mundial, de que o regime militar manipulara os índices de inflação de 1973 e 74, mascarando o verdadeiro custo de vida e penalizando os trabalhadores, cujos salários sofreram defasagem de 34,1%. O sindicato começa então uma campanha pela reposição salarial. A reivindicação não chega a sensibilizar os patrões e o governo, mas a capacidade de organização dos trabalhadores se mostrará importante nos anos seguintes.    A campanha salarial dos primeiros meses de 1978 termina como as anteriores, homologando-se os índices oficiais. Chegou a causar surpresa entre os representantes do governo e os empregadores o fato de o sindicato sequer incluir o índice de reajuste em sua pauta de negociação. O índice, como sempre, seria aquele indicado pelo governo. Na verdade, a omissão foi uma estratégia do sindicato para desmascarar todo o processo e se recusar a fazer uma negociação tutelada pela Justiça do Trabalho. A intenção era jogar por terra o que considerava uma falácia: o sindicato batia na tecla do “roubo” efetuado pelo governo.

    Em fins de março, os trabalhadores da Mercedes-Benz paralisaram suas atividades por não terem recebido o aumento que a empresa costumava conceder. A paralisação atingiu vários setores da fábrica e levou à demissão de 17 operários. A postura da empresa indicava uma alteração nos padrões de negociação: o endurecimento era evidente. Mas não resultou em recuo por parte do movimento. Em entrevista concedida em abril à revista Visão, Lula parecia anunciar que a onda de manifestações estava apenas começando: “O caminho ficou muito tempo fechado, o mato cresceu e está impedindo os trilhos. Agora, estamos apenas cortando o mato e desobstruindo a linha”.

    Em 12 de maio, os trabalhadores da Saab-Scania entraram em greve, e depois de quatro dias arrancaram um acordo “de boca” da direção da empresa. Porém, pressionados pelos outros setores da indústria automobilística, os patrões não cumpriram a promessa, trocando os 20% reivindicados por parcos 6,5%. Nova mobilização foi tentada e prontamente reprimida. O que só serviu de combustível para mais atos, numa seqüência incontrolável.

    Uma a uma, as paralisações se alastraram pelas fábricas do ABC paulista. No dia 15 de maio parou a Ford. No dia 16, a Volkswagen. Naquele mês já se contavam cerca de 20 mil trabalhadores de braços cruzados. Nem mesmo a decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) considerando as greves ilegais esfriou as mobilizações. Pelo contrário: trabalhadores de grandes, médias e pequenas empresas aderiram a tipos variados de greve e com duração diversa, chegando a alcançar outros municípios, como Osasco e São Paulo.

    Pela primeira vez desde o golpe militar, as questões operárias ganharam a cena política nacional. Os militares acusavam infiltração comunista no movimento e a oposição saiu em apoio dos grevistas, que puderam comemorar outra vitória inédita: apesar de não conseguirem os índices reivindicados, obtiveram aumentos salariais acima dos oferecidos inicialmente pelos empregadores.

    Depois daquele 1978, o movimento operário não seria mais o mesmo. As mobilizações atingiram diversas categorias e estados, em centros importantes como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Mas é de novo no ABC paulista, entre os metalúrgicos, que novas situações colocam a luta dos trabalhadores e pela democratização do país em outro patamar.

    As reivindicações do ano seguinte traziam novidades: além do reajuste salarial, pediam também a garantia de emprego e a presença de delegados sindicais no interior das empresas. Em 12 de março de 1979 – em plena transição presidencial, com a chegada ao poder do general João Figueiredo –, mais de 50 mil metalúrgicos decidiram entrar em greve. Grandes empresas, como a Ford e a Volks, amanheceram paralisadas no dia seguinte. Imediatamente espalhada para o interior do estado, a greve foi considerada ilegal pelo governo, mas em seu quarto dia já contava com cerca de 170 mil trabalhadores paralisados.

    Diante de um movimento de tais proporções, restou ao governo tentar negociar. O Ministério do Trabalho propôs criar uma comissão tripartite para estudar o reajuste num prazo de 45 dias, proibir a demissão dos grevistas e parcelar o desconto das horas paradas. Reunidos em assembléia, 80 mil metalúrgicos em São Bernardo, 30 mil em Santo André e seis mil em São Caetano recusaram a proposta. Foi a gota d’água para os militares: no dia 23 de março, o governo decretou a intervenção nos sindicatos, dando início a dias tensos. Por diversas vezes, a massa de trabalhadores quase partiu para o enfrentamento com as forças policiais em praça pública. Com seus espaços fechados, os trabalhadores passam a utilizar a Igreja Matriz em São Bernardo para os encontros das lideranças. Com Lula à frente, nova negociação foi aberta e os sindicatos voltaram a funcionar.

    Em 1980, o conflito se repetiu. Na pauta dos metalúrgicos, além de um reajuste 15% acima do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), entraram reivindicações como a redução da jornada de trabalho para 40 horas sem redução salarial e o controle das chefias pelos trabalhadores. Como era de se esperar, os pedidos foram negados. Resultado: mais uma onda de greves. Mas, desta vez, a repressão veio forte: o governo fechou os sindicatos e prendeu os líderes grevistas e representantes de associações liberais.

    Confrontos entre operários e tropas policiais se sucedem, e no Dia do Trabalho é realizada uma das maiores demonstrações operárias da História do país: 100 mil metalúrgicos se reúnem em São Bernardo do Campo, no Estádio de Vila Euclides – já então um ícone das greves. Após 41 dias de greve, os metalúrgicos do ABC põem fim ao movimento. Lula e outros líderes permanecem presos por mais alguns dias, provocando campanhas nacionais por sua libertação e contra sua condenação. Depois de soltos, os sindicalistas – ao lado de Lula, Djalma Bom, Enílson Simões, Osmar Santos e Nelson Campanholo – são processados com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), em julgamento por tribunal militar no início de 1981.

    A partir das greves ocorridas no ABC paulista entre 1978 e 1980 e de suas reverberações e composições com outros atores, estavam lançadas bases importantes para o processo de redemocratização da sociedade brasileira: um projeto sindical (o “novo sindicalismo”), um partido político (o PT), uma central sindical (a CUT). Acima de tudo, a legitimação dos trabalhadores como um ator relevante no âmbito dos movimentos sociais.

    Marco Aurélio Santana é professor de Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) e autor de Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.

    Saiba Mais - Bibliografia:

    ABRAMO, Laís. O resgate da dignidade: greve metalúrgica e subjetividade. Editora da Unicamp, 1999.

    ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho. Campinas: Editora da Unicamp/Ensaio, 1988.

    PARANHOS, Kátia. Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos – 1971/1982. Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória, 1999.

    RAINHO, Luís Flávio. Os peões do Grande ABC. Petrópolis: Editora Vozes, 1980.

    RODRIGUES, Iram Jácome (org.). O novo sindicalismo e vinte anos depois. Petrópolis/ São Paulo: Editora Vozes/Educ/ Unitrabalho, 1999.

    SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

    Saiba Mais - Site:
    http://www.abcdeluta.org.br/