O Globo estampou: “Tragédia nacional”. O jornal mineiro Diário da Tarde foi ainda mais enfático: “Uma tragédia esportiva sem similar na história do soccer brasileiro”. As manchetes não se referiam a nenhuma derrota da seleção brasileira, mas ao time mineiro Bela Vista Futebol Clube. Justamente em 1958 – ano da primeira conquista brasileira da Copa do Mundo –, o clube fez uma campanha desastrosa nos gramados da Europa: perdeu 19 das 23 partidas disputadas.
Originário da cidade de Sete Lagoas, o Bela Vista foi alvo de um amplo e incisivo ataque que envolveu imprensa, autoridades políticas e esportivas de todo o país. O clube foi acusado de manchar a imagem do Brasil e do principal esporte nacional. Afinal, a seleção brasileira desfilava craques que encantaram o mundo, como Nilton Santos, Didi, Garrincha e Pelé. Parecia inadmissível que o Brasil apresentasse um futebol de segunda categoria. A conquista da Taça Jules Rimet havia cristalizado a imagem do Brasil como “país do futebol”. Segundo o antropólogo Roberto DaMatta, esse triunfo permitiu ao brasileiro penetrar no universo saboroso e nobre da vitória. Foi também a partir dessa conquista que o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues cunhou a expressão “Pátria em chuteiras”.
A imagem vencedora que o futebol proporcionou ao país não podia ser arranhada. Pior ainda se fosse um mês depois de a seleção brasileira conquistar a Copa do Mundo. Mas foi exatamente o que aconteceu: o desconhecido Bela Vista embarcou para o Velho Mundo quando a vitória no mundial ainda era comemorada. A responsabilidade de representar o melhor futebol do planeta era imensa. O exagero da “Nota de Redação” do jornal O Globo em 20 de outubro de 1958 ilustra bem a notoriedade que ganhou o time de Sete Lagoas: “O Caso Bela Vista, assim, é assunto que desafia, em importância, a conquista da Taça Jules Rimet pela Seleção do Brasil”.
Não era dificil prever o resultado desfavorável para o Bela Vista. A principal glória no currículo do clube era o pentacampeonato setelagoano. Fundado em 21 de abril de 1930, o clube começava sua vida profissional justamente naquele ano de 1958. Apesar da pouca experiência, o time foi para a Europa atendendo a um convite. O representante do Bela Vista, jornalista Adelchi Ziller, foi o responsável pela negociação. Ele cobria os jogos brasileiros na Copa e conversou – muito bem, por sinal – com o empresário espanhol Roberto Fauszlengier sobre a posível viagem do time mineiro. Aproveitando o sucesso adquirido pelo futebol brasileiro na grande competição, o empresário vislumbrou na equipe de Sete Lagoas um bom nome para uma excursão pela Europa.
Era uma grande chance para o Bela Vista e, por isso, a proposta foi aceita de imediato pela diretoria do clube. Mas a imprensa esportiva se dividiu: enquanto os jornais mineiros faziam vista grossa, a mídia carioca e a paulista condenavam a viagem. Prevendo a campanha desastrosa, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e o Conselho Nacional de Desportos (CND) – responsáveis pela regulamentação e fiscalização do esporte brasileiro – fizeram de tudo para evitar a excursão do clube mineiro. Mesmo o Bela Vista cumprindo todos requisitos legais, as entidades não liberavam a licença para os jogos. Sem ela, o clube não poderia fazer a campanha. Mas, finalmente, chegaram a um acordo: a autorização foi dada com a condição de que o clube não iria encarar os grandes quadros da Europa; enfrentaria apenas equipes de menor nível técnico.
Mas, para infelicidade da nação, esta promessa não foi cumprida. Alegando que obedecia apenas ao programa estipulado pelo empresário que o havia contratado, o Bela Vista jogou contra times bastante conceituados, como o Real Madrid e o tradicional Newcastle, que chegou a dar uma goleada de 12 x 1 no clube mineiro. Os europeus que acompanhavam as derrotas sofridas pelo Bela Vista se decepcionavam com o time. Segundo propagandas enganosas veiculadas na Europa, o time mineiro seria “o legítimo campeão do Brasil”.
Diante da forte campanha da imprensa contra a excursão, o Conselho Nacional de Desportos passou a procurar meios para ordenar o regresso imediato da delegação do Bela Vista. O assunto foi discutido em várias reuniões realizadas na sede da entidade, no Rio de Janeiro. Após aconselhar o rompimento amigável do contrato e o cancelamento dos jogos restantes sem sucesso, a entidade enviou um ofício a Clóvis Salgado, ministro da Educação e Cultura. No documento, publicado na íntegra nos principais jornais do país, solicitava-se a imediata interferência do Ministério das Relações Exteriores para fazer regressar ao Brasil a delegação de futebol do Bela Vista. Essa medida, segundo o documento, seria necessária “para que se resguarde e socorra o bom nome do desporto brasileiro”.
O ofício remetido pelo CND chegou às mãos do ministro Clóvis Salgado, que o repassou ao ministro das Relações Exteriores, Francisco Negrão de Lima. Este, por sua vez, a par das fracassadas negociações envolvendo a embaixada brasileira em Londres e a delegação do Bela Vista, remeteu novo ofício ao CND com as notificações dos acontecimentos. Por fim, o Itamaraty recomendou o cumprimento dos jogos que restavam ao clube setelagoano, a fim de evitar maior desgaste na já tão desgastada excursão.
Iniciada no dia 1º de agosto de 1958, a programação de jogos foi encerrada no dia 23 de outubro. O Bela Vista desembarcou no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, após, segundo O Globo, “realizar a mais falada excursão de clube brasileiro”.
Depois de passar uma noite na capital federal, a delegação seguiu com destino ao Aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte. Lá, um grande número de torcedores, curiosos, jornalistas, fotógrafos e autoridades esportivas aguardavam sua chegada. O percurso de Belo Horizonte a Sete Lagoas, cerca de 70 quilômetros, foi feito em um inesperado e festivo cortejo preparado por dirigentes e torcedores do clube. Após a triunfante chegada à cidade, os atletas desfilaram pelas principais ruas antes de se dirigirem à sede social do clube, onde houve um coquetel e depois um baile em homenagem aos jogadores.
A recepção exagerada serviu para tornar ainda mais notória a desastrosa excursão. Na festa em homenagem ao Bela Vista, destacou-se uma enorme faixa, pendurada em um caminhão que participou do cortejo, com os dizeres: “Falem mal, mas falem do Bela Vista”. A frase refletia o modo como os dirigentes e torcedores belavistanos viram a fama imediata adquirida pelo clube. Mas a mesma frase não poderia ser aplicada ao futebol brasileiro. Este esporte desempenhava a função de propagandear tão somente as qualidades e virtudes do Brasil e de seu povo.
Elemento primordial na identidade nacional, o futebol monopolizava, naquele momento em especial, a atenção e o interesse da sociedade brasileira. Era por meio desse esporte que o sentimento pátrio era canalizado. E o Bela Vista denegria aquilo que o brasileiro tinha de mais caro: o orgulho de ser o melhor do mundo.
A malsucedida viagem do time mineiro acarretou a reelaboração dos trâmites legais que permitiam excursões de clubes brasileiros ao exterior. A lição foi aprendida, e a partir do “Caso Bela Vista”, o processo para obtenção da licença fornecida pelo Conselho Nacional de Desportos passou a ser muito mais rigoroso. A sociedade brasileira parece ter concordado que o futebol deveria ser usado para difundir unicamente uma imagem positiva do Brasil. Do futebol, só conquistas e glórias eram admitidas. Era proibido perder.
André Carazza dos Santos é analista do Banco Central do Brasil e autor de “A Copa do Mundo no Brasil (1950): Belo Horizonte e o ideal de cidade almejado para encantar os estrangeiros” (www.efdeportes.com.br, 2005).
Saiba mais - Bibliografia
AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
RODRIGUES, Nelson. A pátria em chuteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Saiba Mais - Filmes
“1958 - O ano em que o mundo descobriu o Brasil”, de José Carlos Asbeg. Brasil, 2008.
“O dia em que o Brasil esteve aqui”, de Caíto Ortiz e João Dornelas. Brasil, 2006.
Pisou na bola
André Carazza dos Santos