- Ingênuos, sem qualquer parâmetro moral ou ideia de riqueza, os nativos aceitavam docilmente qualquer bugiganga em troca do pau-brasil. Em geral, é com termos deste tipo que os livros didáticos descrevem os índios encontrados pelos portugueses durante a colonização. Outros estudos, ao contrário, atribuem aos ameríndios uma postura crítica e uma ideologia anticolonial, em nome das quais teriam resistido à presença europeia.Nem a perspectiva da ingenuidade nem a da resistência correspondem às complexas relações estabelecidas entre nativos e europeus. Mesmo quando integrados à sociedade colonial, os povos indígenas agiram, tomaram decisões e se posicionaram, sempre que possível, recriando os significados das políticas destinadas ao seu desmantelamento.Em 1750, Portugal e Espanha haviam concluído o Tratado de Madri, estabelecendo que a demarcação das fronteiras dos seus territórios na América respeitaria a ocupação prévia pelos súditos de cada Coroa. A tomada do espaço amazônico, então, despertou o interesse lusitano. Para dar conta da ocupação que o tratado exigia, os portugueses recorreram aos povos indígenas habitantes do Estado do Grão-Pará e Maranhão (que correspondia, grosso modo, à atual região Norte do Brasil). Valeram-se de dois dispositivos legais: concederam liberdade aos nativos em 1755 e regularam sua integração à sociedade colonial por meio do chamado Diretório dos Índios (1757-1798).Composto por 95 artigos, o Diretório era um programa de civilização laico, baseado no trabalho, no ensino da língua portuguesa e no convívio com europeus. Antigas aldeias missionárias foram convertidas em vilas, onde os índios passaram a viver em um ambiente muito distinto do que estavam acostumados, pois coexistiam com os demais habitantes da sociedade colonial.Uma das modificações impostas pela nova legislação dizia respeito ao chefe indígena. A política colonial sempre buscou cooptar essa figura em alianças com fins específicos – frequentemente a guerra contra os próprios nativos ou europeus que ameaçassem a presença portuguesa na colônia. Essas lideranças eram tratadas de forma especial, pois considerava-se que, uma vez aliciadas, garantiriam a submissão dos demais integrantes sem grandes tropeços.Os europeus assumiam as relações de poder entre aqueles povos como sistemas políticos correlatos aos seus. Já que a hierarquia, o mando e a coerção eram comuns às formas políticas do Velho Mundo, eles as tomavam como fatores universais. Suas características, no entanto, estavam longe de corresponder às práticas dos nativos, que viviam num padrão hierárquico que não implicava, necessariamente, relações de imposição e obediência. O poder das chefias se manifestava, na maioria das vezes, durante as guerras, pois no cotidiano eram os mais velhos que gozavam de maior autoridade.Foi sobre estes atributos dos líderes que a política indigenista portuguesa incidiu de maneira direta. Esperava-se deles uma participação sistemática nos projetos de ocupação do território amazônico e na reprodução da sociedade colonial. Nesse processo de integração, o estatuto da chefia sofreu a sua maior alteração: o poder de mando, a coerção e a hereditariedade passaram a constituí-lo.O Diretório determinava também que os povos indígenas deveriam ser reunidos em unidades coloniais e submetidos ao comando de um diretor, que dividiria a administração com o chamado Principal. O diretor servia como um tutor dos indígenas, por isso idealmente tinha de pertencer à sociedade ocidental, dominando seus valores, de modo que, em princípio, os indígenas não eram pensados para esta função. Enquanto o diretor tinha sob sua responsabilidade toda a condução das vilas, os Principais supervisionavam diretamente os indígenas aldeados. Eles interferiam na resolução de conflitos, ampliavam os aldeamentos com a inclusão de novos grupos, coibiam os insubmissos e, principalmente, garantiam o controle e a oferta de trabalhadores para satisfazer as demandas de “braços” da colônia.Ao contrário das antigas chefias indígenas, os Principais tinham sua autoridade pautada não na condição de guerreiro, mas na de agente da administração colonial. Essa nova função era reconhecida pelas demais autoridades coloniais por meio de privilégios. Entre eles, o direito de enviar trabalhadores ao sertão para a coleta dos gêneros de interesse comercial (as “drogas do sertão”) – sendo os únicos beneficiários do produto dessa venda – e o usufruto de trabalhadores domésticos, de pescadores responsáveis pela coleta diária de pescado e de trabalhadores para uma roça.Àquela altura, passados 250 anos de contatos com os europeus, parte significativa dos povos situados nas várzeas dos rios havia desaparecido ou passado a viver em grupos menores, tornando-se vítimas fáceis nas mãos de apresadores de índios ou de povos inimigos e mais fortes. Por isso, para vários grupos a mudança para as vilas era garantia de proteção, oferta regular de alimentos, possibilidade de aquisição de instrumentos de ferro, pólvora e armas. Os líderes, especialmente os enfraquecidos diante dos inimigos e dos colonizadores, enxergaram na transferência um novo fôlego: passariam a gozar de um prestígio que vinha se deteriorando ao longo do tempo.Embora as autoridades coloniais tivessem passado a ocupar um lugar decisivo na resolução dos problemas da nova vida nas povoações, os nativos não abriram mão de sua vontade. Ao contrário: uma vez inseridos na nova sociedade, passaram a lutar por aquilo que compreendiam ser um direito. Há vários exemplos disso. As índias Petronilha e Madalena recorreram às autoridades reclamando o direito de permaneceram trabalhando nas casas em que haviam sido criadas. A índia Jozefa Martinha reivindicou o contrário: queria se ver livre do trabalho para o senhor Hilário de Moraes Bitancourt. O Principal da Vila de Portel, Cipriano Inácio de Mendonça, queixou-se de não receber o mesmo número de trabalhadores que Manoel Pereira de Faria, Principal da Vila de Oeiras. Maria Silvana, da nação mura, residente na Vila de Cintra, revelou ter sido expulsa de suas terras e exigiu reparação pelos danos sofridos.As reclamações e os pedidos endereçados às autoridades refletiam uma nova postura diante da sociedade colonial. Se até meados do século XVIII os povos indígenas integravam a vida na colônia fundamentalmente na condição de trabalhadores, ao longo da vigência do Diretório dos Índios outras formas de inserção puderam ser percebidas. Em várias das vilas constituídas durante a política de ocupação do território, os povos nativos foram inseridos no âmbito da administração colonial. Na Vila de Melgaço e Portel, Alexandre Mascarenhas e Vital da Costa foram eleitos juízes, enquanto Pedro Mascarenhos, Paullo Pitta, João de Barros e Paullo da Silva, vereadores. Todos indígenas. Em Salvaterra, uma vila situada na ilha do Marajó, dos seis juízes ordinários, quatro eram indígenas, e seis dos nove vereadores também.As chefias foram a ponta do iceberg de um processo mais amplo de integração dessas populações na sociedade colonial portuguesa. Sua importância, no entanto, permaneceu ligada a um atributo essencial para a manutenção da política de Portugal, diante das imposições do Tratado de Madri: garantir o povoamento, por meio da introdução constante de novos residentes indígenas. Não por outra razão, em alguns relatórios formulados pelos diretores daquelas unidades, as listas de habitantes eram elaboradas de acordo com a relação estabelecida com os Principais.Pelos vastos sertões da América portuguesa, os povos indígenas atuaram de maneira decisiva, ora resistindo às investidas europeias, ora cedendo. Muitas vezes subjugados por meio do uso sistemático da violência, sempre que puderam encontraram formas de fazer valer sua vontade. Homens e mulheres, aruãns, jurunas e muras – entre uma infinidade de outras nações, várias hoje desaparecidas – o faziam por meio de ações cotidianas, de levantes, de fugas, de petições e outras formas de manifestação. Das adjetivações que costumam recair sobre os índios daquele período, uma delas talvez seja a mais justa e precisa: a de que foram agentes e protagonistas de sua própria história.Mauro Cezar Coelho é professor da Universidade Federal do Pará e autor da tese “Do Sertão para o Mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798)”, (USP, 2005) e autor de A epistemologia de uma viagem: Alexandre Rodrigues e o conhecimento construído na viagem filosófica às capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (Livraria da Física, 2010).Saiba MaisALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal de Cultura/ FAPESP, 1992.SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.
Poder de branco, poder de índio
Mauro Cezar Coelho