Poder feminino

Luíra Freire Monteiro

  • “Se morrer, morro no meu papel!” Maria II repetia esta frase enquanto enfrentava as agruras dos seus 12 partos. Mal sabia que antecipava seu trágico destino. Morreu aos 34 anos, ao dar à luz seu último filho. Pouco exposta em sua intimidade, fixou na memória lusitana a imagem da face redonda, ladeada de cabelos penteados e fartamente cacheados imortalizada na nota de mil escudos. Ironicamente, a brasileira que assumiu o trono português é desconhecida por aqui.

    Filha mais velha do imperador do Brasil, D. Pedro I, e da arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, Maria da Glória nasceu no Rio de Janeiro em 4 de abril de 1819. Com a morte de D. João VI, restou a ela, que era a neta mais velha, assumir o lugar do pai, que se recusara a voltar para Portugal. Nessa época, com apenas sete anos, não tinha idade para governar. Por isso, teve que se casar por procuração com seu tio, D. Miguel, que foi nomeado regente do reino português.

    Mas quando D. Pedro I proclamou a Independência do Brasil, em 1822, Miguel pediu ao Conselho dos Três Estados a perda dos direitos sucessórios do irmão, o que foi prontamente feito. Decidido a encabeçar o movimento absolutista, assumiu o trono no lugar da esposa, inaugurando um dos períodos mais sangrentos da história lusitana. Começava o embate entre absolutistas, ou “miguelistas”, e liberais, ou “pedristas”.

    As preocupações de D. Pedro I com o trono português e as derrotas políticas no Brasil levaram-no à abdicação do trono brasileiro em 1831, rumando para Portugal e deixando em seu lugar o filho de apenas cinco anos de idade, D. Pedro II. Com o apoio dos aliados, venceu a guerra liberal. Sua filha subiu ao trono em 1834, aos 15 anos, tornando-se Maria II. Conta-se que sua chegada a Lisboa marcou um dia de extrema alegria para o povo, cansado de muitos anos de guerra entre irmãos.

    Ainda em 1834, o casamento com D. Miguel foi dissolvido, abrindo caminho para os arranjos do segundo matrimônio com o irmão de sua madrasta, D. Amélia de Leuchtenberg. As bodas ocorreram no mesmo ano, mas o príncipe Augusto de Beauhamais acabou morrendo dois meses depois da celebração.

    O intervalo para o terceiro casamento foi curto. Três meses depois da morte do marido, as negociações para as novas bodas já estavam concluídas. O noivo era sobrinho do rei Leopoldo, da Bélgica, sendo austríaco de nascimento, como a família materna da noiva. Fernando Saxe-Gotha-Coburgo-Kohari roubou o coração da jovem rainha, e em 9 de abril de 1836 casaram-se na Sé de Lisboa.

    Mecenas afeito aos eventos culturais, D. Fernando trouxe para o Palácio das Necessidades uma nova dinâmica de vida. Influenciou Maria II com seu gosto por rodas literárias, teatro e música. Com uma voz modulada e agradável, o rei cantava ao piano nos serões familiares. O casal real fez dos salões do palácio um local de deleite e de convívio social.

    Hábitos do rei, como os passeios nos jardins a cavalo ou a pé e as visitas às montanhas, passaram a fazer parte do cotidiano de Maria II. Essas atividades ao ar livre permitiram que muitas vezes a rainha fosse flagrada por estranhos com vestidos sujos e manchados, além de borbulhante de transpiração, vindo a ser conhecida como uma mulher pouco dada à higiene corporal, suja e fedida.

    Mas foi o apelido de “rainha gorda” que marcou sua trajetória. Portadora de uma estatura acima da média, Maria II era obesa e corpulenta, com um ventre abaulado, extraordinariamente projetado. Durante seu reinado, foi necessário providenciar um trono especial que suportasse seu peso e comportasse suas medidas. A urna mortuária onde foi depositado seu corpo também tinha dimensões fora da média, contando com nove palmos de comprimento, quatro e meio de altura e quase cinco de largura.

    Em público, era considerada geniosa, déspota, tirana e de difícil trato. Mas, no lar, não se pode negar a docilidade de Maria, notadamente em relação ao marido e aos filhos.  Na vida doméstica, ela era somente “a boa mãe”. Aos poucos, suas feições de menina foram se perdendo, entre as responsabilidades de rainha e a fecundidade de matrona.

    Apesar das obrigações de governante, Maria II cuidou diretamente da rigorosa disciplina dos filhos. Eram rotineiros os passeios com os pequenos, de carruagem por Lisboa ou a pé no Jardim da Estrela. O espanhol Bulhão Pato, poeta, ensaísta e memorialista da política portuguesa do século XIX, conta em suas Memórias que certo dia, quando o príncipe D. Luís caminhava com a mãe, foi inesperadamente abraçado por uma criança. O príncipe teve uma reação de repulsa, afastando-se bruscamente do menino. Maria corrigiu o filho em público, obrigando-o a pedir desculpas à criança ofendida e a retribuir-lhe o abraço.

    Ela também proibia os filhos de usarem tratamento pouco respeitoso com os serviçais. Os infantes eram impedidos de tratar por “tu” até o mais esquecido criado do palácio, assim como os professores, aos quais eram dispensadas as mais respeitosas atenções. Sua preocupação com os filhos era enorme. Hospedada numa quinta em Barcelos, onde ocorreu um incêndio no meio da noite, Maria II apresentou-se em trajes de dormir para salvar os príncipes, que estavam em outra parte da casa. Tomou a arma do soldado que estava de sentinela das crianças e obrigou-o a enfrentar o fogo e tirar seus filhos do local cheio de fumaça. Enquanto isso, o rei foi levado para a rua, descalço e de ceroula, enrolado num casacão.

    A intimidade do casal, publicamente visto como “bem casado”, tropeça nas muitas histórias de ciúme. Em matéria de infidelidade conjugal, o rei foi considerado um verdadeiro artista, e seu comportamento alardeado nos jornais lisboetas. Na lista de suas conquistas figuram até meninas de 13 anos. Considerada impulsiva, Maria II não recebia, por exemplo, mulheres muito bonitas em festas na corte, por medo de que o marido se encantasse por elas.

    A rainha também enfrentou várias rebeliões, como Maria da Fonte (1846-1847) e Revolta da Patuleia (1847), sendo alvo de uma oposição cruel, remanescente das lutas liberais, que nunca reconheceu sua habilidade política. Mesmo diante de muitas revoltas, D. Maria II soube manter-se no poder. A luta por uma nova forma de governo monárquico, no momento de ascensão do liberalismo, marcou os embates políticos de seu reinado. Sendo uma rainha constitucional, tendia a agir como absolutista, quase uma tradição de família, e foi sempre pela força que seu reinado se manteve, e não apenas pela astúcia política e pelos conchavos. Os partidos extremistas chegaram a pedir sua abdicação em praça pública, em meio às revoltas populares. A rainha recusou com segurança, por entender que a estabilidade política portuguesa dependia de seu papel: “Mais depressa morreria combatendo nas ruas do que abdicar”, dizia.

    A oposição também lhe atirou difamações. Rodrigo de Fonseca Magalhães, um dos mais importantes liberais portugueses, acusava-a de adúltera, uma das maiores ofensas para uma mulher de sua época e posição social. A amizade da rainha com Costa Cabral, inimigo político de Fonseca Magalhães e homem forte da administração no reinado de Maria II, servia como justificativa ao burburinho do romance, posto se manter no governo mesmo diante de graves crises políticas por ele provocadas.

    De pulso forte, seus biógrafos admiram a calma e a placidez com que enfrentou os problemas de Estado, tendo atravessado todas as crises políticas grávida. Maria II terminou o reinado já sem guerras civis. Foi reconhecida como grande educadora, em razão das obras no campo do ensino, como a reforma na Universidade de Coimbra e a criação de liceus e escolas politécnicas em Lisboa e no Porto. Também incentivou o desenvolvimento cultural português, criando a Escola de Arte Dramática, a Academia de Belas Artes e o teatro em Lisboa, que receberia o nome D. Maria II.

    Ao contrário de muitas outras rainhas, que se afastaram voluntária e escandalosamente dos papéis destinados às mulheres de sua época, a brasileira que se tornou regente de Portugal fazia questão de sempre voltar à sua origem: fora mulher antes de ser rainha. Essa característica maternal criada em torno de sua personalidade, a mãe que cuida dos filhos e os guarda, mas que também educa e conserva, marca a identidade típica do liberalismo francês, quando a bandeira da pátria foi empunhada por Marianne no quadro “A liberdade guiando o povo”, de Eugene Delacroix. Vitimada pelo mais corriqueiro dos papéis femininos, o ato de parir, é injusto manter essa brasileira no ostracismo. Em seu túmulo foi grafado o elogio final do marido, pelo qual ainda é lembrada pelo povo português : “A melhor das mães e o modelo das esposas”.

    Luíra Freire Monteiro é professora da Universidade Estadual da Paraíba e autora de Pesquisas históricas (EDUEPB, 2008).

    Saiba Mais - Bibliografia:


    BONIFÁCIO, Maria de Fátima. D. Maria II. Lisboa: Círculo de leitores, 2005. Coleção Reis de Portugal.

    CUNHA, Xavier da. A excelsa D. Maria II na intimidade. Coimbra: s/e, 1904.

    LEMOS, Esther. D. Maria II – A rainha e a mulher. Lisboa: Fundação Casa de Bragança, 1954.

    SACADURA, S. C. da Costa. O parto mortal de D. Maria II. Lisboa: s/e, 1940.