No poema “A mãe escrava”, de 1877, uma jovem liberta sofre com a venda de seus filhos ainda cativos para uma região distante. Aflita, ela comenta com uma sinhazinha: “Hoje mesmo o vapor levanta o ferro/ Levando o meu Vicente... a minha Lucia/ Eis porque hoje aqui chorando erro”. Numa época em que o tráfico entre as províncias brasileiras se intensificava – em decorrência, de um lado, da oficialização do fim do tráfico atlântico de escravizados, em 1850, por causa da crescente e contundente pressão britânica; de outro, do aumento da demanda de mão de obra escrava para as lavouras de café do Sul do Império – as famílias eram separadas e a ex-escravizada ganhava “voz” nos versos da cearense Emília Freitas.
Conhecida como “a poetisa dos escravos”, ela integrava o reduzido e atuante grupo de mulheres que escreviam para condenar aquele “infame” sistema por todo o país. A escritora ainda fez mais: ensinou em escolas primárias, integrou o movimento abolicionista, colaborou em jornais do Ceará, do Amazonas e do Pará e publicou três livros.
Emília nasceu em 1855 na cidade de Jaguaruana, distrito de Aracati. Após a morte do pai, comerciante que tinha patente de tenente-coronel e integrava o Partido Liberal, a família se transferiu para Fortaleza, em 1869. Ali, a jovem completou seus estudos, dedicando-se às lições de Geografia, Inglês e Francês. Mais tarde, ingressou na Escola Normal do Ceará. E não demorou a publicar seus primeiros textos na imprensa da capital da província. A partir de 1873, iniciou uma intensa colaboração em vários periódicos, incluindo o jornal abolicionista Libertador e O Cearense, de circulação comercial.
Como em outras regiões do Brasil, o mundo das letras cearense também era predominantemente masculino. Na época, era comum dizer-se que, para o “belo sexo”, a “agulha se sobrepunha à caneta”. Ainda assim, algumas mulheres se destacavam por sua produção intelectual e pela atuação política. Em Fortaleza, Emília Freitas recitava poemas em escolas, praças e solenidades. Também participava da Sociedade Libertadora, fundada em janeiro de 1883. A agremiação feminina era composta de vinte e duas dirigentes e outras 66 “apoiadoras”, que colaboravam com a campanha pelo fim da escravidão no Ceará, como as escritoras Francisca Clotilde (1862-1935) e Serafina Rosa de Pontes (1850-1923).
Desde o início da década de 1870, associações desse tipo se espalhavam pela região. Em rodas de conversas ou reuniões, discutiam-se as implicações filosóficas, políticas e econômicas da manutenção do sistema escravista e também eram lançadas novas ideias para a libertação dos cativos. Não foi à toa que a província do Ceará se tornou a precursora da abolição no país, em 1884. A libertação oficial dos escravos naquele ano foi resultado da intensa articulação política e social do movimento abolicionista cearense. Além de promover debates públicos e reuniões com parlamentares, os abolicionistas mantiveram o tema da abolição na imprensa e organizaram ações de impacto como o fechamento do porto de Fortaleza, para impedir a saída de escravizados da província, entre os dias 27 e 30 de janeiro de 1881. Essa ideia implicou a formação de um grupo envolvendo funcionários do porto que, por sua vez, mobilizaram os lancheiros, para que não transportassem os escravizados da praia até os vapores.
As cearenses participavam ativamente desse movimento, embora a participação de mulheres na Sociedade Cearense Libertadora tenha sido formalizada somente em janeiro de 1883. Ainda assim, bem antes disso muitas já promoviam rifas, recolhiam doações ou organizavam bazares para arrecadar fundos destinados à compra de cartas de alforria. Outras tantas publicavam versos e artigos na imprensa e faziam conferências em locais públicos, divulgando ainda mais o tema da abolição. A jovem poetisa de Jaguaruana era uma delas.
Durante a solenidade de fundação da ala feminina da Sociedade Libertadora, Emília iniciou sua apresentação remetendo-se à participação das mulheres juntamente com os republicanos na França, nos anos 1780. Sublinhava, com isso, o vínculo entre sua causa abolicionista e o ideário de liberdade, de igualdade e de fraternidade da Revolução Francesa. Em seguida, recitou um longo poema, que, em 82 versos, mostrava como a escravidão desrespeitava o direito natural, o Evangelho e o espírito cristão – críticas que também formavam o núcleo central do pensamento abolicionista. Mas a escritora não esqueceu os libertos: indicou caminhos para incluí-los socialmente, isto é, para que alcançassem o estatuto de cidadãos. Assim, ao mesmo tempo em que se alinhava a grupos que defendiam apenas reformas no regime, também se aproximava daqueles mais radicais, que pensavam a cidadania brasileira, apontando a instrução e a alfabetização como formas de integração social e política dos ex-escravos.
Mas nem mesmo a Abolição no Brasil, em 1888, abrandou sua escrita. Em 1891, Emília Freitas publicou a coletânea Canções do lar, reunindo nove poemas que falavam da vida dos cativos. Um ano após o lançamento da obra, deixou a terra natal e embrenhou-se pela região amazônica. Em Manaus, a “capital da borracha”, trabalhou como professora primária, publicou, traduziu contos e escreveu seu principal romance, A rainha do ignoto: romance psicológico (1899), que figura entre os pioneiros da literatura fantástica no Brasil. Dessa vez, voltou seu olhar para a situação das mulheres e a “alma feminina”. A história girava em torno de uma sociedade secreta de mulheres, hierarquicamente organizada numa ilha deserta na costa nordestina do Brasil. Ao longo do século XIX, esse pedaço de terra, chamado de Ilha do Nevoeiro, era governado por uma rainha, que mantinha funcionários, indústrias, mineradoras e escritórios em várias regiões do Império. Em suas andanças por diferentes cidades, ela ia incorporando ao seu reino mulheres vítimas de violência, solidão e desamor.
Em 1900, Emília encontrou seu companheiro, o jornalista Arthúnio Vieira. Depois do casamento no Amazonas, os dois embarcaram para o Ceará. Reconhecida nos círculos literários do Norte e do Nordeste e seguindo as orientações de Allan Kardec (1804-1869), a escritora fundou, com outros conterrâneos, o grupo espírita de Maranguape, no Ceará. Também se tornou responsável, ao lado do marido, pela publicação do primeiro jornal espírita cearense, Luz e Fé, em 1901. O casal se tornou propagandista da doutrina espírita nas diferentes cidades em que viveram. A opção pelo espiritismo rendeu ao casal algumas reações, como o apedrejamento e a tentativa de ocupação policial de uma das casas em que residiram em Belém no Pará, entre 1902 e 1904, na qual inauguravam o Centro Espírita Paraense com uma sessão pública.
De volta à bacia amazônica desde 1902, Emília e Arthúnio levaram uma pequena tipografia, onde produziam jornais, como O Progresso e Luz e Fé, nas cidades de Belém, Abaetetuba e Manaus. Ali, divulgavam desde informes sobre os preços dos produtos agrícolas e o trânsito de vapores até debates políticos e notícias sobre montagem de espetáculos e circulação de livreiros. Nas publicações, também difundiam ideias espíritas, referências republicanas e críticas político-sociais. Em O Progresso de 18 de junho de 1905, o editorial, possivelmente de autoria do casal, saudava o “mês de maio”, “(...) que memora esse gigante passo para a luz, para o Progresso: a abolição da escravatura preta: mas, sobretudo, porque é em maio, o mês das flores, que o operário universal celebra a grande festa do trabalho.”
As datas comemorativas eram sempre pretextos para Emília e Arthúnio reavaliarem “fatos grandiosos” de nossa História. Em 14 de maio de 1905, um dia após celebrarem o aniversário da Abolição, mostravam que o movimento não foi “a resultante de uma lei”: “nasceu do povo, começou nas baixas camadas sociais, e, torrente tenuíssima, como disse Nabuco, penetrou nos lares, invadiu os quartéis...”.
Depois de uma intensa vida pelas terras amazônicas e seus igarapés, a cearense acabou acometida pela febre amarela e faleceu às margens do Rio Negro, em 1908. Mulher engajada e atenta aos movimentos políticos e literários de seu tempo, Emília continua desconhecida para muita gente. Mas com as pesquisas mais recentes em diferentes áreas de estudo sobre a história das mulheres e sobre autoria feminina no Brasil, sua trajetória e as de outras escritoras vêm, finalmente, sendo redescobertas.
Alcilene Cavalcante é autora de Uma escritora na ‘Periferia do Império’: vida e obra de Emília Freitas. (Editora Mulheres, 2008).
Saiba mais - Bibriolgrafia
DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2001.
FREITAS, Emília. A Rainha do ignoto: romance psicológico. 3ª ed.. Florianópolis, Editora Mulheres, 2003.
MUZART, Zahidé (org.). Escritoras Brasileiras do século XIX. Florianópolis, Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.
Poesia consciente
Alcilene Cavalcante