O velho diretor de cinema acordou em um hospital de Além Paraíba, Minas Gerais, rodeado pela família, em algum momento do mês de outubro de 1983, e não se furtou a fazer a pergunta brincalhona: “Ué, eu já morri?”.Como todos aqueles que são iluminados pela inteligência, o cineasta mineiro Humberto Mauro (1897-1983) era muitíssimo bem-humorado e, eterno curioso, vivia atento ao mundo à sua volta. Foi isso que o levou a fazer cinema e o manteve na indústria por décadas a fio. No começo de sua carreira, ele se mostrou mais atraído pela técnica do que por qualquer outro aspecto da sétima arte. Mas, assim que a dominou, acabou se valendo de seu talento para criar uma linguagem própria e inovadora.
Embora nascido em Volta Grande, na Zona da Mata mineira, ele passou toda a juventude e seus anos de formação em Cataguases – onde chegou com a família em 1910, trazido pelo pai, o imigrante italiano Caetano Mauro (1864-1939). A cidade de menos de seis mil habitantes era igual a tantas localidades do interior, com um rio, uma ponte, uma praça, uma igreja. O jovem Humberto viveu lá até o início da década de 1930, e sua inquietação o fez experimentar as carreiras de goleiro de futebol, remador, enxadrista, jogador de sinuca, fotógrafo, eletricista, radioamador, músico, dramaturgo, ator, autor, roteirista, montador e diretor de cinema.
A paixão pela sétima arte surgiu quando ele trocou sua valiosa coleção de selos por aquela que veio a ser sua primeira máquina fotográfica, a Kodak de Dona Lucília Taveira, uma filatelista cataguasense. Mauro logo começou a fazer contato com gente do meio, como “Seu” Pedro Comello (1874-1954), imigrante italiano descrito pelo historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) como um “pintor talentoso, retratista por excelência, dotado de grande habilidade artesanal”. Os dois se associaram, e com uma Pathé-Baby 9,5mm – pequena câmera utilizada na época para o registro dos chamados “ABCs” (aniversários, batizados, casamentos) –, começaram a rodar os primeiros filmes do cineasta.
O curta-metragem inicial, “Valadião, oCratera”(1925), chamou a atenção do comerciante Homero Cortes (1888-1976), que resolveu investir na dupla e adquiriu uma câmera Ernemann 35mm, um equipamento já profissional. Assim que se associou a outro comerciante, Agenor de Barros (1884-1973), o grupo fundou uma produtora, a Phebo Sul America Film. Com Pedro Comello na câmera, “NaPrimaveradaVida” (1926) não tardou a estrear em Cataguases. O filme era estrelado por Francisco Mauro (1907-1977), irmão de Humberto – que atua com o nome de Bruno Mauro –, e Eva Comello (1909-1990), a heroína da película anterior, filha de Pedro, que passa a adotar o nome de Eva Nil. Com a repercussão das duas fitas, a jovem passou a ter fotos suas estampadas em Cinearte, a principal revista de cinema da época, e ficou conhecida como a “estrelinha de Cataguases”.
Antes disso, em 1920, Humberto se casou com Maria Vilela de Almeida (1990-1988), a dona Bêbe, moça de uma “beleza extremamente fina” que achava o marido dernier-cri – um “rapaz moderno”. Os dois, aos olhos sentimentais da cidade, eram vistos como o Romeu e a Julieta de Cataguases. Não foi à toa que o casamento durou enquanto viveram. Mais tarde, com a saída de Eva Nil da companhia em 1926, Mauro resolveu escalar Bêbe – com o nome artístico de Lola Lys – como a mocinha de sua nova realização.
Entre todos os filmes que fez ao longo da carreira, “ThesouroPerdido” (1927) era o preferido do cineasta. Isso não se devia apenas ao elenco escolhido – que contava com vários parentes de Humberto –, mas também ao fato de a fita ter utilizado algumas técnicas que lhe foram sugeridas pelo cinéfilo Adhemar Gonzaga (1901-1978), editor da prestigiada revista Cinearte. Gonzaga havia, por exemplo, criticado o excesso de letreiros do filme anterior de Mauro, que, por sua vez, não titubeou. “ThesouroPerdido” se valeu do recurso que os grandes mestres do cinema mudo mundial sempre usaram para serem compreendidos: falar por imagens.
A sequência de uma tempestade, realizada com rara inventividade, foi feita com chuva de regador, sendo que os raios foram obtidos por meio de riscos na película virgem. Nas cenas de galopes, os closes das patas dos cavalos foram feitos com uma lata de farinha pintada de preto por dentro e com duas lentes: uma de foco longo e outra comum. Dessa maneira, Mauro inventou uma espécie de teleobjetiva. Por tudo isso, “ThesouroPerdido” recebeu o Troféu Cinearte de melhor filme brasileiro do ano. Na sequência, a Phebo Sul America acabou se abrindo para acionistas, passou a se chamar Phebo Brasil Filme e elegeu Agenor Cortes como presidente e Homero Cortes como secretário. Humberto Mauro assumiu a função de diretor técnico – era o único assalariado da equipe – e se tornou o primeiro cineasta a ter carteira assinada no Brasil.
Com uma infraestrutura melhor, a terceira produção do Ciclo de Cataguases, “BrazaDormida” (1928), assumiu ares de superprodução. Foram contratados no Rio de Janeiro profissionais como o fotógrafo Edgar Brasil (1902-1954), que logo se tornaria o melhor iluminador do cinema brasileiro, e o casal de protagonistas,formado por Nita Ney (1908-1996) e Luiz Soroa (1906-1980). Mas quando Mauro começou a elaborar o roteiro de seu filme seguinte, Adhemar Gonzaga avisou que era chegada a hora de mudar a abordagem do seu cinema: “De qualquer maneira, precisas apresentar agora um film mais bilheteria. Não são beijos nem farras, mas um sensualismo elegante. Todo film deve ter uma boa dose pelo menos de mocidade”.
Quarta e última produção da Phebo, com externas feitas no Rio e em Belo Horizonte, “SangueMineiro” (1929) mostra um Humberto Mauro já senhor de si. Sua evolução de um filme para o outro é precisa, rápida e surpreendente. Mas a fita só foi viabilizada por conta da participação de Carmen Santos (1904-1952), que, além de protagonizá-la, foi coprodutora. Era a estreia da atriz como estrela: apesar de já ter feito outros três filmes no Rio de Janeiro, seus fãs só a conheciam de fotografias. Sua entrada na Phebo trouxe prestígio e dinheiro para a produtora, mas não o suficiente para mantê-la em atividade.
Com o fim da companhia, Mauro veio para o Rio a convite de Gonzaga, que havia acabado de fundar sua produtora, a Cinédia. Aqui ele dirigiu “Lábiossembeijos” (1930), “Gangabruta” (1933) e “Vozdocarnaval” (1933). Logo depois, o cineasta passou a trabalhar na Brazil Vita Filmes, produtora de Carmen Santos, onde dirigiu “FavelladosMeusAmores” (1935), “CidadeMulher” (1936) e “Argila” (1940). Com produção do Instituto de Cacau da Bahia, Humberto embarcou na realização de “ODescobrimentodoBrasil” (1937), que reproduzia a chegada de Cabral ao país. Mas, um ano antes, ele começara a viver uma aventura ainda maior: a convite de Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), foi trabalhar no Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince). Lá ele dirigiu cerca de 300 documentários – grande parte deles fotografada por seu filho, Zequinha Mauro (1921-2003)– até se aposentar em 1967.
Em meio a essa maratona cinematográfica, Mauro ainda retornou a Volta Grande, onde dirigiu seu último longa-metragem, “Ocantodasaudade” (1952), e uma pequena obra-prima, o curta “Avelha afiar” (1964). Não só nesses trabalhos, como em boa parte de sua carreira, Mauro perenizou as paisagens que vislumbrava em sua infância. “A poesia do cinema está nos long-shots, nos grandes planos gerais. A roda d’água, por exemplo, é de uma fotogenia extraordinária. Aquele rodar lento, os musgos, a água batendo contra o sol (...) Pega um carro de bois no topo de um morro, contra o sol, o candeeiro, o carroceiro em cima do cabeçalho – é de uma beleza incrível!”, dizia o diretor num depoimento de 1975.
As últimas tomadas da vida de Humberto Mauro se deram no Hospital de Volta Grande, no dia 4 de novembro de 1983. Ele não sabia, mas naquela noite de sábado, ao despertar, descobriu que estava novamente internado. Havia uma semana. A brincadeira do “já morri” não tinha mais graça: o velho cineasta, agora, estava sozinho. Por isso, ele se levantou, ainda tonto, tentando voltar para casa. Era só atravessar a rua: sua casa ficava ali em frente, na avenida que havia sido batizada com o seu nome: Cineasta Humberto Mauro. Ele não chegou a dar um passo sequer. Caiu ali mesmo, fulminado pela doença que o abatia. Sem ver pela última vez a luz da mata mineira em sua plenitude, paisagem que ele enquadrou ao longo de toda a vida.
Ronaldo Wernecké poeta e jornalista, autor de Kiryrí Rendáua Toribóca Opé – Humberto Mauro revisto por Ronaldo Werneck (Artepaubrasil, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
ANDRIES, André. O cinema de Humberto Mauro. Rio de Janeiro: Funarte, 2001.
GOMES, Paulo Emílio Salles.Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974.
SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
Poesia em grandes planos
Ronaldo Werneck