Poesia esquecida

Maria Helena de Queiroz

  • “A história literária é feita de exclusões e se define tanto pelo que recusa e ignora quanto pelo que aceita e consagra”. A afirmação do crítico Wilson Martins serve como diagnóstico do mal que acometeu a obra do poeta paulista Guilherme de Almeida (1890-1969).

    Ele passou pelo subjetivismo dos românticos, pela rigidez parnasiana, pela sugestão dos simbolistas, pela ousadia dos modernistas. Foi pioneiro na adaptação do haicai para o português, utilizando este singelo modelo japonês de poesia para exprimir toda a trama da vida. Esta diversidade de experiências levou a crítica a conferir-lhe diferentes rótulos. O resultado é que Guilherme de Almeida nunca foi devidamente valorizado pelos estudiosos e pela crítica.

    Nascido em Campinas, teve uma vida tão intensa quanto sua produção. Guilherme de Almeida cresceu em ambiente propício à literatura. O pai, amante da cultura clássica, o introduziu no estudo do grego e do latim, do francês e do alemão. Fluente em várias línguas, foi tradutor de autores como Sófocles, Baudelaire, Verlaine e de outros poetas franceses, além de clássicos da literatura infantil alemã. Dedicou-se ao cinema, fazendo revisão literária de argumentos, diálogos e scripts para os filmes da Companhia Vera Cruz. No jornal O Estado de S. Paulo, escreveu diversas crônicas sobre imigrantes (depois reunidas no livro Cosmópolis, em 1962). Foi um dos fundadores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), passando a traduzir autores teatrais como Sartre, Cocteau e Anouilh.

    Também se envolveu com causas políticas, e apaixonadamente. Em 1932, alistou-se como soldado na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Derrotada a resistência ao governo Getulio Vargas, Guilherme de Almeida teve que se exilar em Portugal por oito meses. A essa altura, já era um autor consagrado, eleito o “Príncipe dos Poetas Brasileiros” em concurso do jornal Correio da Manhã.

    Sua estréia acontecera em 1914, com a publicação do livro Simplicidade. A ele se seguiriam várias obras: A dança das horas (1919), Livro de horas de soror dolorosa (1920), A frauta que eu perdi (1922), Meu (1923), Raça (1925), Poesia vária (1947) e O anjo de sal (1951), entre outras. Logo passou a ser reconhecido por sua sensibilidade melódica e visual, pelo domínio da linguagem e pela variedade temática, formal e de estilo. Compõe sob a luz de diferentes tendências. Usa processos impressionistas e expressionistas, revela traços do romantismo, se aproxima do classicismo e estabelece um diálogo com a poesia medieval. Exemplo disso são os versos impressionistas:

    Elas passam no poente, junto aos cais. Seus vultos
    volantes, nos stróphions curtos,
    azuis, dourados e lilases,
    são leves e sutis: parecem grandes aves.
    As cortesãs passam no ocaso cor de malva.
    Canções gregas (1922)


    E os versos clássicos:

    Ia a noite dos montes descendo
    mais cedo em tal sazão, como soía,
    e o rebanho das nuvens, que tangia,
    com seus guizos d'estrelas, recolhendo.
    Poesia vária (1947)


    Manuel Bandeira (1886-1968) não poupou palavras para definir sua obra – segundo ele, o Brasil estava diante do “maior artista do verso em língua portuguesa”.

    Aberto como era à experimentação formal, não causa surpresa que tenha se aproximado do movimento modernista. Foi um dos fundadores da revista Klaxon, participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda passou a percorrer o país proferindo palestras em que defendia a renovação estética representada pelo movimento. No entanto, não escapou das críticas. O fato de manter-se simultaneamente fiel à sua trajetória clássica o levou a ser qualificado com apelidos irônicos como “girondino do modernismo” ou “camoniano moderno”, entre outros clichês que recebeu ao longo de décadas. O espírito clássico aliado ao desejo de renovação foi visto como indecisão.

    Curioso é que Manuel Bandeira também se engajou no Modernismo sem deixar de produzir sonetos parnasianos. E para Carlos Drummond de Andrade, longe de significar “indecisão”, isso demonstrava a variedade de interesses literários de Bandeira. Segundo Drummond, o escritor pernambucano dominava todas as possibilidades poéticas de seu tempo. O mesmo se verifica na produção de Guilherme de Almeida, em que os processos expressivos e os recursos formais ilustram o percurso da poesia brasileira.

    Um capítulo à parte na trajetória do poeta foi a descoberta do haicai em 1936. Este tradicional formato de poema japonês – que consiste em apenas três versos, com um esquema rígido de rimas e uma métrica sempre igual (cinco sílabas, depois sete, depois cinco) – arrebatou Guilherme de Almeida, que passou a difundi-lo no Brasil. Pessoalmente, parecia-lhe um fascinante desafio “reduzir a poesia à sua expressão mais simples”, como ele próprio definiu:

    Vinte anos de poesia – uns trinta livros de versos escritos e uns vinte publicados – levam-me hoje à conclusão calma (que não é uma negação à minha nem um sarcasmo à obra dos outros) de que não há idéia poética, por mais complexa, que, despida de roupagens atrapalhantes, lavada de toda excrescência, expurgada de qualquer impureza, não caiba estrita e suficientemente, em última análise, nas dezessete sílabas de um haicai.

    Era um ato de ousadia, e ele sabia disso, citando o poeta Takahama Kyoshi, que certa vez afirmou ser impossível escrever um haicai em outra língua que não o japonês. Pois Guilherme de Almeida tratou de demonstrar que a forma do folclore brasileiro – nossas modinhas, provérbios e “trova popular” – combinava perfeitamente com a proposta do haicai. E pôs-se a produzir, durante a década de 1940, grande quantidade de haicais. Num deles, usava o próprio formato para defini-lo:

    O Haicai
    Lava, escorre, agita
    a areia. E enfim, na bateia,
    fica uma pepita.


    Esta produção, no entanto, passou quase despercebida pela crítica. E ainda lhe sobraria outro rótulo negativo: o de poeta “alienado”, distanciado do mundo, indiferente aos dramas sociais do Brasil. De fato, sua obra revela muito mais encantamento com o mundo do que interesse pela miséria humana, e a tônica social não é recorrente em seus escritos. Mas isso não era uma regra imutável. Em Cosmópolis, por exemplo, o autor deixa entrever a luta dos estrangeiros diante de uma vida difícil que, ao contrário do que esperavam, encontraram no Brasil.

    A simpatia pelo homem que vive à margem da sociedade se manifestará também em 1961, com o surgimento de Rua. Neste livro, Guilherme de Almeida nos oferece um “quadro” original da cidade de São Paulo, composto de mulheres, bêbados, mendigos, demonstrando que seu olhar era atraído não só pelos contornos graciosos de corpos perfeitos de bailarinas (como em A dança das horas), mas também pelo patético da condição humana, evidenciado nas silhuetas pálidas de seres sugados pelo tempo, como a vedette.

    De qualquer modo, é inadequada a atitude de querer impor idéias, valores, ideais e aspirações ao artista. Nada disso é indispensável à arte. Nas palavras do filósofo italiano Benedetto Croce (1866-1952), essas categorias só podem ser admitidas “desde que não se lhes atribua caráter determinante na hora de qualificar um texto poético”, uma vez que a obra poética é “criação e não reflexo, monumento e não documento”.

    A poesia de Guilherme de Almeida foi alvo de incompreensões e de polêmicas superficiais, vítima de análise parcial e arbitrária, de clichês, de comparações fáceis, de comentários que se repetem. A crítica preocupou-se mais em estabelecer relações e rupturas entre o poeta e o movimento modernista do que em apreender sua obra como um todo.

    O resultado foi o inexplicável esquecimento de uma obra rica e original. Os estudos literários atuais ainda têm passado à margem de uma poesia que, pelo seu valor estético, aguarda o devido (re)conhecimento. Flutua no ar, clara como os versos de um haicai, a imperiosa necessidade de preencher essa lacuna.

    Maria Helena de Queiroz é professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e autora da tese “A variedade literária na obra poética de Guilherme de Almeida” (UNESP, 2003).


    Saiba Mais - Bibliografia:   

    CAMPOS, Haroldo de. Orelha, sem título. In: ALMEIDA, Guilherme de; VIEIRA, Trajano. Três tragédias gregas. São Paulo: Perspectiva, 1997.

    GOGA, H. Masuda. Guilherme de Almeida e eu. In: ALMEIDA, Guilherme de. Haikais Completos. São Paulo: 1996.

    VOGT, Carlos (Org.) Os melhores poemas de Guilherme de Almeida. São Paulo: Global, 2001.


    Saiba Mais - Sites:

    http://www.museus.sp.gov.br/casaguilhermedealmeida.htm

    http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed132/geral_museu.asp

    Imagens melódicas

    Inserido no livro O anjo de sal (1951), o poema Lembrança é um belo exemplo do poder musical e cromático da poesia de Guilherme de Almeida.

    "Lembrança"

    Lembro o pudor da paisagem
    e a fanfarra de perfumes
    que o claro clarim dos lírios
    abria na madrugada.

    Lembro o susto dos insetos
    na castidade das águas,
    e as asas do pó fugindo
    atrás da luz desnudada.

    Lembro a fala dos caminhos
    ao longo dos passos cegos,
    e os ventos enovelados
    na cabeleira das nuvens.
      
    Lembro o bulício da palha
    quando pisavas a tarde,
    os olhos cheios de folhas
    e as mãos repletas de ninhos.

    Lembro a noite dos meus olhos
    sem luas no seu silêncio,
    quando ficavas na sombra
    e a sombra ficava estrela.

    Lembro a palavra parada
    na flor adiada da boca,
    e lembro o beijo retido
    ao gesto alado de adeuses.