Polícia para quem precisa

Francis Albert Cotta

  • Ao correr os olhos pelas pranchas de Johann Moritz Rugendas, reunidas em Viagem pitoresca através do Brasil, obra clássica publicada em Paris entre 1827 e 1835, é possível identificar a presença constante de militares da Guarda Real da Polícia nas cenas brasileiras representadas pelo artista alemão. As imagens, que apresentam as interações entre policiais, pescadores, comerciantes, mulheres e escravos, em pranchas como “Desembarque”, “Castigo Público na Praia de Santana” e “Praia dos Mineiros no Rio de Janeiro”, abrem um produtivo horizonte de novas representações e análises sobre a presença e a atuação da polícia no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, indo muito além da propalada função de repressão e controle social.

    Não se pode deixar de lado, é claro, o fato de que muitas dessas cenas foram modificadas na Europa, uma vez que um bom número das litografias da época obedecia plenamente ao gosto e aos interesses europeus. Assim, a obra de Rugendas, que tinha como matéria-prima suas observações no Brasil, teve que ser completada e enriquecida para a publicação. Mas seus registros não perdem por isso o valor documental.

    Muito antes da chegada de Rugendas, porém, aportou no Rio de Janeiro, em 1808, a Corte portuguesa. Era necessário, portanto, “civilizar” a cidade, organizar os seus espaços e disciplinar os costumes de sua população segundo o paradigma da “civilização” européia. Neste sentido, a Intendência Geral da Polícia teria assumido o papel de “agente civilizador” daquele espaço, funcionando como uma instituição privilegiada do Estado para a difusão de valores e códigos de comportamento social condizentes com a nova ordem social que se pretendia fundar no Brasil.

    Dessa maneira, a Intendência Geral da Polícia no Rio de Janeiro, tendo à frente o brasileiro Paulo Fernandes Viana, atuante no período de 1808 a 1821, dedicou-se ao processo de urbanização e saneamento da cidade: aterrou pântanos; calçou ruas; construiu pontes, aquedutos e fontes públicas; estendeu a iluminação utilizando lampiões a óleo de baleia. Atuava, ainda, na expedição de passaportes, no controle de casas de correção de escravos, de festas e espetáculos públicos, entre outras funções, assumindo uma multiplicidade de atribuições.

  • É importante sublinhar que, no início do século XIX, o conceito de polícia estava relacionado à cultura, ao aperfeiçoamento e melhoria na “civilização” da “nação”, no governo e na administração da “república” (da coisa pública). Também estava ligada ao tratamento decente, ao decoro, à urbanidade dos cidadãos (daqueles que moram na cidade) no falar, nas boas maneiras, na cortesia, no polimento; tinha em vista as comodidades: a limpeza, a iluminação e o abastecimento (de água e alimentos). Por fim, destacavam-se as atividades relacionadas à segurança e à vigilância.

    Essa amplitude de funções da polícia era herdeira das necessidades estruturais da centralização do “Estado Pombalino” português (período em que o Estado português ficou sob exercício político do marquês de Pombal), além de ser uma característica comum às polícias européias dos séculos XVIII e XIX. Em Portugal, e posteriormente no Brasil, as atribuições eram desenvolvidas pela Intendência Geral da Polícia.

    Como a Intendência da Polícia tinha um caráter eminentemente administrativo, impôs-se a necessidade de uma força de intervenção. Para tanto, em 1809 foi criada no Rio de Janeiro a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia, comandada pelo coronel José Maria Rabelo, que servira em sua congênere de Lisboa. Seu ajudante era o major Miguel Nunes Vidigal. Os oficiais e praças da Guarda provinham dos regimentos de infantaria e cavalaria de linha da Corte. Possuía, portanto, desde sua institucionalização, característica e mentalidade fortemente militares.

    De certa forma, Debret, que esteve a serviço da Corte Imperial, sendo contratado como professor de pintura histórica da Missão Artística Francesa – como ficou conhecido o grupo de artistas e arquitetos trazidos por D. João VI ao Rio de Janeiro em 1816 –, participou da construção dessa “Ordem Imperial” na sede do Império português e, posteriormente, do Império brasileiro. Através de suas aquarelas, reunidas no livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado em Paris entre 1834 e 1839, Debret procurou construir a imagem de uma cidade urbanizada, policiada e civilizada, nos moldes europeus. Segundo o próprio autor, ele “desejava compor uma obra histórica brasileira, em que se desenvolve progressivamente uma civilização que já honra esse povo, naturalmente dotado das mais preciosas qualidades, o bastante para merecer um paralelo vantajoso com as nações mais brilhantes do antigo continente”.

  • Entre as diversas pranchas da Viagem Pitoresca e Histórica, algumas abrem possibilidades de análise do cotidiano policial e dos próprios oficiais. Na imagem “Negociante de Tabaco”, o francês registra que: “O guarda, durante este momento de descanso, conversa com uma negra vendedora de legumes que carrega o filho à moda africana”. Nessa representação, o militar da Guarda Real da Polícia conduzia um grupo de escravos responsáveis pelo abastecimento de água nas fortalezas – uma atribuição constante no rol das funções da “polícia”. Numa clara inversão da funcionalidade do objeto, os escravos, para consumirem seu tabaco, transformam os recipientes para transporte de água em bancos. O olhar do policial se desvia para a mulher e com ela dialoga. A bengala, instrumento para instigar os escravos e afastar do caminho “os amigos demasiado loquazes”, é colocada em segundo plano. Sua postura corporal não é de quem vigia.

    Algumas imagens procuram mostrar que a cidade possuía “polícia”, ao se civilizar à moda européia. Fato que transparece tanto no patrulhamento, visto como manutenção da ordem, quanto na representação das comodidades da cidade: ruas calçadas, pontes, aquedutos, fontes públicas e iluminação. Por outro lado, de forma intencional ou não, representam alguns guardas da polícia que não poucas vezes desviavam os olhares (teoricamente vigilantes) para outros interesses, além de interagirem com outros atores sociais da cidade.

    A prancha “Os refrescos do Lago do Palácio”, por exemplo, apresenta em seu lado direito um policial em posição de ombro-arma a observar os transeuntes. Do lado esquerdo, um policial encurvado, segurando sua cobertura, bebe água num barril conduzido por um escravo.

    Esse conjunto de imagens produzidas por Rugendas e Debret faz os observadores participarem de uma realidade histórica brasileira que tem sua origem em um conceito de polícia adotado em Portugal e que, apesar de ter sofrido variações, estaria relacionado de forma central à idéia de manutenção da ordem estabelecida – seguindo uma perspectiva que via o conflito como uma enfermidade a ser tratada, para a saúde do corpo social. Esta concepção teria permanecido na estrutura e na mentalidade policiais do Brasil.

  • Inicialmente, a polícia não designava uma força pública. Na França, a força pública (Gendarmerie) seria uma concepção resultante das mudanças ocorridas a partir de 1789. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada pela Assembléia Nacional Constituinte francesa em 26 de agosto de 1789, no início da Revolução Francesa, e integrada, como preâmbulo, à Constituição de 1791, em seu artigo 12º prescrevia: “a garantia dos Direitos Humanos e os dos cidadãos requer uma força pública; esta é, portanto, instituída em benefício de todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem ela é confiada”.

    Portanto, a finalidade inicial da criação da força pública francesa, mesmo que tenham ocorrido desvios com o passar dos anos, se diferenciava da portuguesa por colocar o cidadão em primeiro lugar. Em Portugal e na América portuguesa, as instituições responsáveis pela polícia privilegiaram, desde o momento de sua fundação, a idéia de ordem na cidade.

    As instituições portuguesas responsáveis pela polícia, a partir de meados do século XVIII, teriam sido construídas a partir da reapropriação e da adequação das estruturas policiais adotadas em Paris, representadas pela figura do Lieutenant General de Police e pela Gendarmerie, transformadas em Intendência Geral da Polícia e Guarda Real da Polícia. Por outro lado, as atividades da polícia no Rio de Janeiro não se limitariam à questão da repressão e do controle social, como revela claramente a produção iconográfica desses dois artistas europeus, cronistas de uma época.

    Mas parece evidente que a historiografia que tratou da polícia no Brasil seguiu uma linha teórica em que se privilegiou a idéia de um Estado repressor a utilizar a polícia como um instrumento de controle por meio da força. Para ela, a “polícia era um exército permanente travando uma guerra social contra os adversários que ocupavam o espaço a seu redor”. A meta da polícia era reprimir e subjugar. “Vidigal e a Guarda Real foram um sucesso total, não obstante a necessidade ocasional de impor disciplina e frear os excessos das práticas policiais”, como afirma Thomas H. Holloway em seu estudo Polícia no Rio de Janeiro. As ações repressivas do major Vidigal foram imortalizadas nas páginas de Memórias de um sargento de milícias, escritas por Manuel Antônio de Almeida em

    Francis Albert Cotta é professor da Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina (UEMG) e autor de Breve História da Polícia Militar de Minas Gerais (Crisálida, 2006).

     

  • Ao longo da história, as pranchas produzidas por Rugendas e Debret têm sido utilizadas para ilustrar diversos livros didáticos e paradidáticos. Geralmente os autores, no processo de editoração das imagens, fazem recortes que privilegiam determinados aspectos da representação. Na maioria, a figura do policial e a sua atividade são apagadas da representação. O destaque ora é dado a um negro que recebe uma punição, ora a uma festa popular. Nessas pranchas, o policial comumente é representado nas margens da imagem, ocupando um lugar secundário, apesar de estar quase sempre presente. 

    A partir do cruzamento e da leitura de fontes, como registros policiais, processos criminais, livros-mestres e conselhos de guerra, iluminados por essa valiosa iconografia, abre-se a possibilidade para a escrita de uma história do “cotidiano do policial”, e não apenas do cotidiano policial no século XIX. É possível, dessa forma, lançar luz sobre a complexidade das interações sociais estabelecidas pelos diversos atores de uma época, possibilitando uma visão além das cores fortes e vistosas que se traduziram numa história unicamente pautada pela repressão e pela resistência.

    A despeito do padrão europeu dos uniformes, é evidente que vários integrantes da Guarda da Polícia eram mestiços e, portanto, membros da sociedade local. Os guardas eram, portanto, brasileiros, com suas inquietações, limitações e potencialidades. Neste sentido, as aquarelas captam parte da complexidade e das contradições das interações sociais entre população e polícia num momento decisivo de transição do Império português para o brasileiro.


    Francis Albert Cotta é professor da Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina (UEMG) e autor de Breve História da Polícia Militar de Minas Gerais (Crisálida, 2006).