Política indígena

Paulo Martinez

  • Desde que foi criado, em 14 de abril de 1961, por um decreto presidencial, o Parque Nacional do Xingu, no norte do estado de Mato Grosso, vem ajudando a pôr em evidência a questão indígena no Brasil. Personalidades do cenário político, cultural e científico estiveram envolvidas em todo o processo de criação e manutenção dessa área no meio da floresta. Em cinquenta anos de existência, o Xingu atraiu também a atenção de celebridades mundiais, como o cantor de rock Sting e a modelo Gisele Bündchen.

    O Parque, assim como o Museu do Índio do Rio de Janeiro, são as instituições, em escala nacional, que melhor trazem à lembrança o antigo Serviço de Proteção aos Índios. O SPI surgiu em 1910 por obra de Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), um militar de carreira que se tornaria marechal do Exército brasileiro. Ele chegou a participar de expedições que percorreram as fronteiras do Brasil instalando postos telegráficos e buscando o contato amigável com as populações indígenas do interior do país.

    A criação do SPI e a nomeação de Rondon para dirigi-lo resultaram da atuação de militares e intelectuais no início do século XX, empenhados na incorporação dos povos indígenas à nação brasileira e na garantiria de condições físicas e morais para tal. O órgão sempre esteve voltado para a localização, o contato e a promoção da coexistência pacífica entre colonizadores e indígenas nas frentes de expansão econômica. Acreditava-se que esses objetivos seriam alcançados por meio da demarcação das terras, da proteção contra a violência dos fazendeiros, da alfabetização, do ensino de práticas agrícolas, da assistência médica, da aprendizagem de ofícios rurais e artesanais, e de atos cívicos e nacionalistas.

    A Constituição brasileira de 1934 estipulou que a política indigenista seria uma atribuição do governo federal, disposição que seria mantida nos textos de 1937 e 1946. Foi entre 1940 e 1957 que o SPI conheceu o auge do seu prestígio institucional. Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), o governo brasileiro promoveu a “Marcha para o oeste”, que visava à incorporação territorial e econômica de áreas no Brasil Central – os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, além do sul do Pará – e das populações sertanejas e indígenas que ali habitavam.

    A expansão em direção ao centro-oeste do país foi marcada pela colonização e por conflitos pela terra. Essa ação teve início em junho de 1943 – ano em que foi instituída a data de 19 de abril como Dia do Índio – com a expedição que explorou a Serra do Roncador e o vale do Rio Xingu, em Mato Grosso. Houve destacada atuação dos irmãos paulistas Claudio, Leonardo e Orlando Villas Boas. O contato dos novos colonizadores com os grupos indígenas na região gerou confrontos violentos e mortes nas aldeias. A ação dos irmãos sertanistas também foi decisiva para o salvamento de vários grupos que perdiam suas terras em outras áreas e acabaram sendo abrigados dentro dos limites do Parque.

    A reunião de diferentes povos e a reorganização de seus territórios significaram uma mudança na política indigenista brasileira praticada até os anos 1950. Novas ideias se faziam necessárias, pois, além da redução drástica da população indígena, as estimativas eram de que sobreviviam cerca de 100 mil indivíduos em todo o Brasil. José Maria da Gama Malcher, que dirigiu o SPI entre 1950 e 1954, contratou etnólogos e procurou substituir a antiga orientação positivista, herdada de Rondon, por outra, baseada nas teorias da Antropologia social. Foram contratados jovens profissionais, como Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira, que deram um novo impulso à instituição. Aos poucos, o contingente populacional de indígenas começou a aumentar, e essa tendência permanece até hoje.

    O SPI contribuiu para que isso ocorresse ao adotar medidas como o plano de criação do Parque Nacional do Xingu (1952), a instalação do Museu do Índio (1953) e, principalmente, a atuação de 106 postos de assistência às populações indígenas (1955). A intenção dos criadores do Parque era montar uma vitrine para a política indigenista brasileira. Nele, seria privilegiada a associação da preservação da natureza com a dos povos indígenas, uma articulação entre o ser humano e o ambiente que protegeria, física e culturalmente, os habitantes originários do Alto Xingu. O Parque também consagraria uma imaginação fantasiosa, a do paraíso intocado. Imagem que tem sido construída e renovada desde a década de 1940 em filmes, fotografias, jornais, revistas, obras literárias e visitas de personalidades ao local.

    Há dois livros do jornalista e escritor fluminense Antonio Callado (1917-1997), que esteve na região do Xingu em 1952, contribuindo para reforçar essa idéia sonhadora. Esqueleto na Lagoa Verde (1953) investigava a viagem do explorador britânico Percy Fawcett (1867-1925), desaparecido nas selvas de Mato Grosso. O outro, Quarup (1967), seu romance mais conhecido, trata do ritual que reúne os povos do Xingu.

    Atualmente, o Parque Nacional é denominado Terra Indígena do Xingu. Sua área original era de 22 mil quilômetros – equivalente ao território da Bélgica – e abrigava inúmeros grupos indígenas, como os iwalapitis, os kaiabis, os caiapós, os kalapalos, os kamaiurás, os kuikuros, os suyás e os waurás. Hoje as plantações de soja que o circundam comprometem a disponibilidade e a qualidade das águas e dos rios, e há também perdas irreparáveis na biodiversidade nativa.

    O Serviço de Proteção aos Índios instalou, a partir de 1942, uma Seção de Estudos, que tinha como objetivo pesquisar as sociedades indígenas e divulgar a ação do SPI. Tratava-se, efetivamente, de um museu na sede do órgão, além de mostruários nas inspetorias regionais, coleta e exibição de documentos sobre a vida indígena, como objetos, filmes, gravações sonoras, fotografias, conferências e exposições. Tudo isso visava despertar o interesse do público pelos povos indígenas no Brasil. Darcy Ribeiro ampliou essa ideia quando inaugurou, no dia 19 de abril de 1953, o Museu do Índio num prédio da Rua Mata Machado, em frente ao Estádio do Maracanã. Isso ocorreu num momento em que a etnologia brasileira acreditava que os indígenas e sua cultura estavam condenados à extinção.

    O Museu reúne farta documentação sobre a atuação do Serviço de Proteção aos Índios, possui uma biblioteca especializada, muitos livros e trabalhos universitários, um rico acervo de cultura material e registros audiovisuais. Ali são realizadas exposições, atividades pedagógicas e de divulgação sobre as populações indígenas do Brasil. Agora, mais de trinta anos depois da transferência do museu para o bairro carioca de Botafogo – mudança que ocorreu em 1978 –, o prédio que abrigou sua primeira sede sofreu grande deterioração. Em 2006, militantes das causas indígenas de diferentes etnias promoveram a ocupação do edifício e lá permaneceram. Os ocupantes reivindicaram a cessão do prédio pelo Ministério da Agricultura, para que pudesse ser restaurado e preservado. O velho casarão está ameaçado de demolição pelas obras no estádio que sediou a decisão da Copa de 1950, e que a receberá novamente em 2014.

    O SPI, por sua vez, amargou o declínio a partir de 1957, quando estava sujeito à política partidária e a fins eleitorais na sua ação institucional. A situação chegou a despertar reações indignadas de alguns de seus técnicos e funcionários. O órgão acabou sendo extinto em 1967, durante a ditadura militar. No mesmo ano foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai), que existe até hoje e herdou as missões do SPI.

    Atualmente, os grupos indígenas que vivem em território brasileiro estão recebendo nova atenção do Estado e da sociedade. A Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde, foi criada em 2008. Na área educacional, a Lei 11.645, de 10 de março do mesmo ano, incluiu a diversidade da história e das culturas dos povos indígenas no currículo oficial da rede de ensino. Além do Parque do Xingu, há vários museus etnográficos espalhados pelo Brasil e abertos à visitação, que podem servir como estimulantes pontos de partida para que se conheça melhor a cultura daqueles que aqui estavam antes da colonização europeia.

    Paulo Henrique Martinez é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e autor de História ambiental no Brasil: pesquisa e ensino (Cortez Editora, 2006).


    Saiba Mais - Bibliografia

    DIACCON, Todd A. Rondon: o marechal da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

    MENEZES, Maria Lucia Pires. Parque Indígena do Xingu: a construção de um território estatal. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.

    SCLIAR, Moacyr. A majestade do Xingu. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.