Vivendo entre o tambor de crioula e a escultura grega, no Brasil nunca foi uma tarefa fácil combinar democracia e políticas culturais. Ver o povo como protagonista da produção cultural é um pequeno passo para equilibrar esta equação, mas um grande salto na trajetória dos órgãos públicos. Até dezembro, os encontros estaduais da II Conferência Nacional de Cultura abrirão um espaço democrático para esse debate.
Em 2005, a I Conferência lançou as bases para a elaboração de políticas culturais a longo prazo. Das discussões do encontro surgiu a proposta do Plano Nacional de Cultura, que prevê diretrizes para as políticas públicas nos próximos dez anos e está em finalização. “A II Conferência Nacional de Cultura ocorrerá em março de 2010. A ideia é integrar as políticas nos diversos níveis de governo e potencializar o aproveitamento de recursos. Não é um movimento só nosso. Colômbia e Argentina também já estão dando importância à cultura dentro do poder público”, afirma a pesquisadora Lia Calabre, da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Aos poucos, a cultura popular começa a ganhar um apoio efetivo, deixando de ser apenas parte de um passado folclórico. Uma das inovações decorrentes dessa nova abordagem é o reconhecimento público dos griôs, mestres das tradições orais com profunda sabedoria sobre a cultura popular. Um apoio impensável tempos atrás, quando as políticas culturais oscilavam entre o autoritarismo e a ausência do Estado. Se a Era Vargas foi o berço dessas ações, o regime militar outorgou sua maioridade.
Unidos pelo nacionalismo, Getulio Vargas e os modernistas realizaram experiências pioneiras. Carlos Drummond de Andrade foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema no então recém-criado Ministério da Educação e Saúde, entre 1934 e 1945. Nesse mesmo período, Mário de Andrade esteve à frente do Departamento de Cultura de São Paulo por três anos. “Drummond fazia a ponte entre os modernistas e Capanema, que era muito conservador”, comenta o sociólogo Simon Schwartzman, coautor do livro Tempos de Capanema.
O diálogo de Mário de Andrade com Capanema resultou na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan), em 1937. A iniciativa enfatizou uma preferência radical pela conservação da cultura portuguesa, como o patrimônio de pedra e cal das igrejas barrocas.
Somente a gestão do designer Aloísio Magalhães (1927-1982) no Iphan dos anos 1970 ampliou a noção de patrimônio, incluindo os bens imateriais e aumentando as ações voltadas para os povos originários. Mas Mário de Andrade já trilhava caminhos diferentes do governo federal, fundando a Sociedade de Etnografia e Folclore no mesmo ano do Iphan. Dirigida pela antropóloga francesa Dina Dreyfus, esposa do também antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a Sociedade financiou uma das primeiras expedições etnográficas ao “Brasil profundo”, experiências posteriormente relatadas em livros como O turista aprendiz, do próprio Mário de Andrade, e Tristes trópicos, de Lévi-Strauss.
No geral, as primeiras políticas culturais eram vistas como ações pedagógicas, desvinculando-se do Ministério da Educação somente em 1985. Orientadas para uma formação clássica, erudita e europeia, elas destoavam em muito da realidade brasileira. Algumas iniciativas regionais buscaram preencher este espaço com projetos de educação popular. Foram os casos do Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife, e do grupo De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, em Natal, que ocorreram nos anos 1960. Ambos contaram com o financiamento de prefeitos locais e a participação do educador Paulo Freire.
A alfabetização era apenas uma entre diversas atividades, que iam de grupos teatrais a cursos de cerâmica ou corte e costura. Dezenas de milhares de pessoas passaram pelos grupos, sem contar as que acompanhavam os programas educativos pelas ondas do rádio. As iniciativas também influenciaram outros movimentos posteriores, como o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes.
Mas, se por um lado, a produção direcionada ao povo foi bem-sucedida na educação, por outro, teve ressalvas no campo das artes. Enquanto dirigiu o CPC, o escritor Ferreira Gullar questionou a proposta de fazer obras fáceis e acessíveis. “Fazíamos algo de baixa qualidade artística para atingir o povão, mas, na hora, não tinha povão nenhum. A gente ia pro sindicato fazer apresentações e ficava apenas meia dúzia de sindicalistas: o presidente, o dirigente, mas não a massa sindical”, recorda Gullar, que não deixa de reconhecer o CPC como um importante momento na organização de uma arte contestadora.
O golpe militar pôs fim ao CPC, ao MCP e ao grupo De Pé no Chão, enquanto, aos poucos, formalizou a separação institucional entre educação e cultura. Em 1966 foi criado o Conselho Federal de Cultura, com o objetivo de preservar a nacionalidade em épocas de globalização crescente. Em 1975, a abertura da Fundação Nacional de Artes (Funarte) inaugurou um apoio sistemático à produção de arte contemporânea, até então negligenciada pela prevalência da noção de patrimônio histórico.
Mas, após a criação do Ministério da Cultura, inconstância foi a palavra-chave do setor. Em dez anos, nove dirigentes passaram pelo maior cargo dos órgãos de políticas culturais. No governo Collor, o ministério chegou a ser extinto, voltando a ser apenas uma secretaria e retomando o status maior somente em 1992, no mandato do presidente Itamar Franco. Em meio à turbulência, as ações no contexto da redemocratização tinham em comum a lógica dos incentivos fiscais. Apesar de exercida desde a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, esta prática se tornou a base das políticas culturais em um ciclo iniciado com a Lei Sarney (1986) e firmado com a Lei Rouanet (1991) e a gestão do cientista político Francisco Weffort na pasta de Cultura (1994-2002). “Cultura é um bom negócio”, dizia o lema do ministério.
A entrada maciça de conteúdos estrangeiros também já era uma realidade nos anos 1990. Muitas vezes, a solução encontrada pela cultura popular foi retomar a tradição antropofágica e engolir estas novas influências, regurgitando-as com um tempero nacional. Como a tropicália, o manguebeat seguiu esta vereda, envenenando os baques do maracatu com guitarras elétricas, coco de roda com hip-hop. Idealizado por jovens músicos do Recife, o movimento mostrava não só a fome de influências estéticas, mas também aquela de verdade, usando crítica social da obra do geógrafo Josué de Castro (1908-1973) como referência em diversos momentos.
Aos poucos, o manguebeat ultrapassou a música, tornando-se uma influência estética mais ampla. Mas, inicialmente, suas propostas modernizadoras criaram atritos com as políticas públicas do governo. Preservar intactas as raízes da cultura nordestina era um dos objetivos do Movimento Armorial, liderado por Ariano Suassuna. A divergência conceitual assumiu traços bastante reais durante a gestão do escritor na Secretaria de Cultura de Pernambuco, justamente no momento em que o manguebeat ganhava fôlego. Suassuna não só não apoiava as atividades dos músicos como fez críticas abertas a seus idealizadores em vários momentos.
Mas a ameaça maior para a cultura popular não vinha do exterior. As leis de incentivos fiscais transferiam para a iniciativa privada a decisão de quais projetos seriam apoiados. Assim, o Estado não assumiu a responsabilidade de fazer um planejamento profundo das políticas culturais, tornando-se um mero financiador. Manifestações sem apelo comercial evidente foram desfavorecidas até a nomeação do cantor Gilberto Gil para o Ministério da Cultura, com a posse de Lula em 2003.
Continuadas pelo atual ministro, Juca Ferreira, as políticas públicas agora enfatizam uma concepção ampla de cultura. O conceito é visto como processo, não somente produtos. “Esse alargamento possibilita a formulação de políticas públicas voltadas para a cultura como expressão simbólica e de cidadania, encarando-a como algo contínuo, e não apenas como eventos”, explica Célio Turino, secretário de Cidadania Cultural do Ministério.
Se as manifestações apoiadas foram diversificadas, o curto cobertor orçamentário não foi capaz de cobrir as artes clássicas conforme a expectativa dos produtores da área. O outro lado da moeda também prejudica a própria sustentabilidade das iniciativas, que por vezes deixam de receber apoio para que a ampliação continue. Também carece de atenção a elaboração de uma legislação trabalhista que contemple as especificidades da área cultural, cuja dinâmica geralmente é baseada em projetos, e não em um vínculo empregatício permanente. Para Turino, ainda há muito o que fazer nesse campo: “É preciso um novo marco legal que sedimente o conceito de que quem faz cultura é a sociedade, e de que cabe ao Estado apenas garantir meios para que isso seja feito”.
Saiba Mais - Bibliografia:
RUBIM, Antonio Albino. Bibliografia sobre políticas culturais no Brasil. Bahia: Edufba, 2006.
RUBIM, Antonio Albino. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições. Galáxia (PUC-SP), v. 13, p. 101-113, 2007.
CALABRE, Lia. Política cultural no Brasil: um breve histórico. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005.
Saiba Mais - Links:
Confira os artigos no site rhbn.com.br/politicacultural
Políticas da cultura
Adriano Belisário