Pondo ordem na Casa

Santiago Silva de Andrade

  • Quando a Corte portuguesa aportou no Rio de Janeiro em 1808, foi recebida com vivas, música e fogos de artifício. Entretanto, por parte da nobreza emigrada, as manifestações relativas à nova morada foram bem menos positivas. O calor dos trópicos, a mistura de negros, brancos e índios nas ruas tortuosas de uma cidade colonial, a falta de perspectiva quanto ao retorno para Portugal, tudo isso contribuía para que os nobres portugueses nutrissem constante animosidade pelas coisas do Brasil. Um dos exilados portugueses, o marquês de Borba, resumiu em poucas palavras o sentimento da maioria dos seus compatriotas sobre o Rio de Janeiro: tratava-se de “um novo mundo, mas para pior”.

    Pior ou não, o Rio de Janeiro estava destinado a ser o novo centro do Império português e fazia-se necessário montar aqui uma máquina administrativa e burocrática idêntica à que funcionava em Portugal: uma Suprema Corte, um Conselho Militar, uma Imprensa Real etc. No centro de toda aquela estrutura estava a Casa Real, instituição que encerrava a própria razão de ser do Estado monárquico lusitano. Sob sua jurisdição estava uma ampla criadagem, organizada segundo uma hierarquia e um vocabulário próprios da Casa e subordinada, em última instância, ao príncipe regente, D. João VI.

    É necessário esclarecer que a denominação “criado” não tinha, naquela época, qualquer conotação negativa. Pelo contrário: estar integrado ao serviço real era uma honra disputada pelos súditos, e as pessoas que serviam à Casa do rei gozavam de status privilegiado, já que dispunham de um canal de acesso direto ao monarca. O uso do termo “criado” consolidou-se nas cortes medievais européias, onde os nobres tinham o hábito de colocar seus filhos sob a “criação” do rei – isto é, de confiar a responsabilidade por sua alimentação, moradia e educação ao monarca. Em contrapartida, o jovem nobre seria incorporado ao serviço da Casa. Mas, ao longo da idade moderna, as cortes européias ganharam complexidade e, como resultado, no início do século XIX não só os nobres integravam o serviço da Casa Real portuguesa, que incorporava pessoas das mais diferentes origens sociais.

  • Entre 300 e 350 criados e criadas da Casa Real acompanharam a Corte portuguesa na viagem para o Brasil em 1808. Assim que chegaram no Rio de Janeiro, instalaram-se nas celas da Câmara e Cadeia e no antigo palácio dos vice-reis, transformado em Paço Real. A Ucharia Real (espécie de despensa da realeza) e a cozinha foram instaladas no Convento do Carmo, mesmo lugar que alojou a rainha D. Maria I e algumas de suas damas. Os três locais estavam interligados por passarelas, cobertas para facilitar a movimentação não só da família real, mas também dos seus servidores. A Enfermaria dos Criados da Casa Real foi estabelecida no Hospital da Ordem Terceira de São Francisco. Por último, as cavalariças reais foram instaladas no quartel do esquadrão de cavalaria.

    A Casa Real portuguesa estava organizada em seis grandes setores administrativos, chamados “repartições”. A repartição da Mantearia Real era responsável por todos os assuntos relativos à mesa do rei e sua família (toalhas, talheres, guardanapos etc). À repartição da Guarda-Roupas cabia a tarefa de cuidar das vestimentas de D. João VI e seus parentes. A repartição das Cavalariças cuidava dos eqüinos, muares, seges e carruagens responsáveis pelo transporte da família real. Alimentação e bebida estavam a cargo da Ucharia e Cozinhas Reais, enquanto a Real Coutada era a repartição responsável pela administração das florestas e bosques. A fiscalização e a organização de todas estas repartições estavam nas mãos da Mordomia-Mor.

    A gestão do espaço doméstico de D. João estava a cargo dos chamados Oficiais da Casa Real, em geral membros de famílias nobres. Através de um intrincado sistema de ordens e requisições, esses oficiais procuravam manter a Casa do rei de maneira minimamente digna. Mas como eles logo perceberiam, não seria tarefa fácil (re)organizar uma Casa Real européia no Brasil. Falta de dinheiro, intrigas e conflitos com a sociedade local marcariam o processo de instalação da Casa Real portuguesa nos trópicos.

  • Se houve alguém que conheceu de perto essas dificuldades, essa pessoa foi Joaquim José de Azevedo, o barão do Rio Seco (1761-1835). Tesoureiro da Casa Real, o roteiro de suas ações desenrolava-se da seguinte forma: sempre que um oficial da Casa precisasse de dinheiro para suprir a sua repartição (comprar roupas ou alimentos, por exemplo), fazia um pedido ao tesoureiro. Azevedo, por sua vez, era responsável pela requisição de verbas ao Erário Régio e posterior controle e distribuição dos recursos disponíveis. 

    Em 15 de janeiro de 1813, Azevedo escreveu áspera carta ao marquês de Aguiar, D. Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817), mordomo-mor da Casa Real, presidente do Real Erário e secretário de Estado de D. João VI. Pedia a liberação de 4:000$000 (quatro contos de réis) requisitados pela camareira-mor, marquesa de Lumiares (c.1740-?) e reclamava que era impossível reduzir ainda mais as despesas da Casa, como exigia Aguiar, “visto que em um só mês em Lisboa se gastava mais do que têm sido as despesas desde que S.A.R chegou até o presente”. Além dos empecilhos financeiros, Azevedo era alvo da desconfiança do marquês de Aguiar, que julgava faltarem qualidades ao barão para ocupar o cargo. Talvez, antevendo problemas, o mordomo-mor procurasse preservar a imagem da Casa Real perante a população do Rio de Janeiro.

    Dois anos depois Azevedo já tinha adquirido a fama de gastador e irresponsável. Os fluminenses não perdoavam e criavam rimas, ouvidas nas esquinas e praças da Corte: “furta Azevedo no Paço/Targini rouba no Erário/e o povo aflito carrega/pesada Cruz ao Calvário”. Francisco Bento Maia Targini, o barão de São Lourenço (1756-1827), era o provedor da Casa da Moeda. Azevedo se defendia sempre com a mesma fórmula: “Eu não promovo despesas, mandam-nas fazer”. Em 1821, ano em que deixou o cargo de tesoureiro, o déficit em sua repartição passou de 10:578$526 para a incrível quantia de 239:049$846!

  • A limitação orçamentária atingia em cheio todos os setores de Casa Real. O estribeiro-mor, marquês de Vagos, reclamava ao mordomo-mor, em 30 de maio de 1811, da “falta de capim para o sustento das bestas das Reais Cavalariças”. A dívida da Casa Real com os fornecedores de ração era tamanha que, uma semana depois, Vagos escrevia novamente a Aguiar informado que, embora o tesoureiro do Erário Régio tivesse pago aos credores a “metade do que se lhe estava devendo (...), esta providência não foi o bastante para os animar a continuarem com os ditos fornecimentos”.

    As querelas enfrentadas pelos oficiais da Casa extrapolavam os corredores do palácio. Logo os habitantes do Rio de Janeiro sentiriam na pele os problemas decorrentes da satisfação das necessidades cotidianas da Casa Real. Os aluguéis de casas aumentaram com a aplicação de novos impostos sobre a propriedade urbana. E os preços dos gêneros de primeira necessidade subiram vertiginosamente com o aumento da procura. Em 1819, alguns moradores remeteram a D. João um requerimento reclamando da falta de galinhas. Explica-se: por ordem do novo administrador da Ucharia Real, todas as galinhas à venda no Rio de Janeiro deveriam ser compradas por agentes da Casa Real. Em conseqüência disso, a Ucharia abarrotou-se de galináceos, e se alguém quisesse comprar alguma ave daquele tipo, deveria pagar o preço exigido pelos “atravessadores” da despensa real.

    As ruas também foram palco de conflitos entre os criados da Casa Real e representantes do poder local. Na tradicional procissão católica do Corpo de Deus, no ano de 1817, os meirinhos da Câmara da Corte, “atropelando por modo vergonhoso, e muito indecente Costumes de muitos séculos”, ocuparam a função que em Lisboa era costumeiramente exercida pelos reposteiros da Casa Real – neste caso, a distribuição de cera em determinados pontos da cidade. Mas no Rio de Janeiro, o lugar em disputa sempre tinha sido ocupado pelos meirinhos da Câmara, pelo menos até a chegada da família real, em 1808. O episódio foi revelador de um embate entre os representantes da Casa Real – vistos como intrusos – e representantes do poder local, vistos como violadores de uma tradição.

  • Enquanto esteve no Brasil, a Casa Real não encerrou suas ligações com Portugal, como atestam as petições e os requerimentos enviados de Lisboa, depositados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Em sua maioria, eram pedidos de pensão feitos por viúvas ou filhas órfãs de criados da Casa, predominante e curiosamente, cozinheiros. Havia também em Portugal criados que permaneceram ligados à Casa Real. Mantinha-se, assim, uma Casa entre dois mundos, entre a novidade do mundo colonial e as tradições de uma instituição essencialmente metropolitana.

    Até o fim do século XIX, as fontes jurídicas que orientaram a organização hierárquica da Casa Real e Imperial permaneceram as mesmas que tinham sido elaboradas entre os séculos XV e XVIII. O regimento do mordomo-mor utilizado pela Casa Imperial em 1847, por exemplo, foi originalmente escrito no ano de 1547, e literalmente copiado em pleno século XIX. A manutenção desses textos tinha o objetivo de criar uma tradição à qual a imagem da Casa pudesse estar associada e proteger o núcleo dos criados da Casa contra qualquer tipo de controle ou interferência externos a esta (como a Assembléia Legislativa, por exemplo).

    Alguns criados da Casa Real voltaram para Portugal com D. João VI, em abril de 1821. Cabiam agora ao jovem Pedro I as rédeas do universo doméstico legado por seu pai. Com o advento da Independência em 1822, D. Pedro começou a reorganizar o que seria a Casa Imperial do Brasil, renovando parcialmente o quadro de criados, demitindo antigos colaboradores de seu pai e nomeando amigos para importantes ofícios da Casa. Nomes como Plácido de Abreu (“Barbeiro Plácido”), Francisco Gomes da Silva (o “Chalaça”), Gordilho, Berquó e Domitila de Castro (viscondessa de Santos) formariam, no Primeiro Reinado, a pequena corte do imperador D. Pedro I, demonstrando a persistência de antigas formas de se fazer política no bojo do processo de construção do Estado e da nação brasileiros.

    Santiago Silva de Andrade é doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com a pesquisa “Morar na Casa do Rei, Servir na Casa do Império: sociedade, cultura e política no universo doméstico da Casa Real Portuguesa e da Casa Imperial do Brasil (1808-1840)”.