Por baixo da batina

Fabiano Vilaça

  • É curioso perceber que em pleno século XXI, mesmo após a derrubada de vários tabus pela sociedade, algumas descobertas ainda causam tanta perplexidade. Vide o caso dos sucessivos rebentos do ex-bispo e atual presidente do Paraguai, Fernando Lugo. Pensando bem, é novidade nos países de colonização ibérica o fato de um padre ser pai (sem trocadilho)? Só para aqueles que não sabem da grande quantidade de clérigos que, no período colonial, viveram amancebados e tiveram numerosa prole, muitas vezes à vista de todos. Afinal, privacidade não era o forte daqueles tempos.

    Um deles foi o padre José Martiniano de Alencar, deputado e senador cearense, pai do escritor homônimo que se tornou um dos maiores nomes do Romantismo brasileiro. Nascido no Crato em 27 de outubro de 1794, José de Alencar pai teve uma vida agitadíssima. De família aguerrida, lutou ao lado dos irmãos e da mãe, Bárbara de Alencar, na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador (1824), movimentos que demonstraram o descontentamento das elites nordestinas com os rumos da política ditados pela Corte.

    Prevendo a chegada da morte – que acabou se atrasando 15 anos –, o padre resolveu manifestar suas últimas vontades. Para isso, nada mais trivial do que redigir, de próprio punho, um testamento, feito no Rio de Janeiro em 10 de março de 1845 e hoje depositado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

    Seguindo um rito costumeiro nesse tipo de documento, José Martiniano de Alencar buscou o patrocínio divino. Não fez como outros tantos homens e mulheres que encomendavam suas almas aos anjos e aos santos de devoção. Foi direto a Deus, “árbitro supremo do meu destino na outra vida”. Em seguida, declarou ser filho de José Gonçalves dos Santos e de Bárbara Pereira de Alencar. Eis aí a primeira polêmica sobre a vida do presbítero secular do hábito de São Pedro. Diz-se, sem muito fundamento, que Alencar seria filho de seu padrinho, o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, e não do comerciante português José Gonçalves. Intrigas à parte, Miguel Carlos foi um padrinho dedicado, financiando os estudos do afilhado no Seminário de Olinda. Tanto que José de Alencar fez questão de pedir no testamento uma capela de missas (50 celebrações) pela alma do vigário, “em retribuição dos muitos benefícios que lhe devo”, estipulando a mesma quantidade de ofícios para seus pais, já falecidos, e para ele próprio.

    Um testamento é capaz de revelar vários aspectos da vida do seu autor. Além da preocupação em buscar uma morte cristã e a salvação da alma, ele é uma espécie de “prestação de contas” da vida, como diz a historiadora Cláudia Rodrigues. O acerto de contas era feito com Deus e com os homens. Por isso, o testador registrou: “declaro que nada devo a pessoa alguma”. E reconheceu que, “por fragilidade humana”, tivera sete filhos com sua prima, Ana Josefina de Alencar. Reconheceu-os como legítimos e “únicos e universais herdeiros” da fazenda que lhes deixou. Ainda que a união fosse extraoficial, o senador reservou à prima e testamenteira a terça parte de seus bens – o que cabia a uma esposa –, descontando umas terras que herdara dos pais no Sítio Pau Seco e na Fazenda São Gonçalo. A escrava Angela aguardaria (talvez sem saber) a morte do senhor para ganhar a alforria e “gozar da liberdade como se nascera de ventre livre”.

    Os testamenteiros também foram encarregados de preparar para José de Alencar “um enterro solene com aquela decência que requer o meu estado sacerdotal e o lugar que ocupo na sociedade”. Afinal, além de senador, um cargo vitalício, o político cearense tinha uma extensa folha de serviços prestados ao Império. Mesmo depois de participar de movimentos contrários ao poder dos Bragança, foi eleito deputado às Cortes de Lisboa, deputado constituinte em 1823, deputado geral e presidente da província do Ceará.

    Em 1844, D. Pedro II deixou contentes os liberais como José Martiniano de Alencar: substituiu o gabinete conservador por um liberal, chefiado por Francisco de Paula Souza e Mello. Mas a saúde do parlamentar cearense não andava boa, e deve ter sido este o motivo que o levou a fazer o testamento. Retirou-se da Corte tempos depois e só voltou em 1848, deixando a vida pública em 1856, quatro anos antes de morrer.

    Nessa época, José de Alencar, o romancista, publicava os primeiros folhetins. O pai ainda viveu para ver aquele que se tornou um de seus maiores sucessos: O Guarani, de 1857. Aliás, Alencar filho parece ter curado pelo amor algumas feridas da família. Casou-se com Georgiana Cochrane, prima do almirante Cochrane, contratado por Pedro I para pacificar as províncias resistentes à sua autoridade e rechaçar a Confederação do Equador. Teve seis filhos. Nisso saiu ao pai.