Pour Elise

Michael Lillis e Ronan Fanning

  • Como companheira de Solano López, Elisa Lynch teve grande influência sobre o estilo, a moda e a vida cultural paraguaios, sobretudo na capital, Assunção.A bela companheira do ditador paraguaio Francisco Solano López, a irlandesa Elisa Lynch (1833-1886), tem sido caluniada pela História. Classificada como uma prostituta calculista pelos irmãos de López e pela elite hispânica de Assunção, ela foi acusada de ter incitado o líder a iniciar a Guerra do Paraguai (1864-1870). O representante diplomático dos Estados Unidos, William Washburn, em livro publicado em 1871, o diretor do principal jornal de Buenos Aires, La Tribuna, Hector Varela, e caricaturas na imprensa do Rio de Janeiro faziam essa acusação. Uma pesquisa nos arquivos da polícia francesa e nos registros dos meios de comunicação da época mostra que estas foram invenções infundadas de seus inimigos.

    Quando Elisa Lynch pisou pela primeira vez em solo paraguaio para viver com López (1827-1870), no porto de Assunção, em 1855, seu nome já era comentado na cidade como o de alguém que abandonara o primeiro marido. Segundo as más línguas, ela seduzira o filho da mais importante família do Paraguai.

    Os dois tinham se conhecido em Paris no ano anterior. Ele, na época ministro geral, estava na cidade em missão diplomática e de aquisição de armamentos. Ela havia emigrado com sua família para Bologne-sur-Mer, na costa norte da França. Nascida na Irlanda, tinha sido batizada como católica em Charleville, no Condado de Cork. A mãe, Elizabeth Lloyd, era protestante, mas o pai, John Lynch, era um católico nacionalista. Foi em solo francês que Elisa recebeu uma excelente educação.

    O primeiro matrimônio da jovem ocorreu quando tinha 16 anos. Ela se casou com um farmacêutico do Exército francês, Xavier Quatrefages, em uma igreja protestante na Inglaterra. Mas a união não chegou a ser reconhecida na França porque Quatrefages não pedira a permissão do ministro da Guerra para se casar com a estrangeira, como exigia a legislação francesa. Depois de três anos, ela o deixou. Um ano depois, Quatrefages, pago por López, aceitou que ela teria direito a suas propriedades, renunciando à condição de “marido”. Elisa sofreu a humilhação de se mudar com o cônjuge de posto em posto do Exército, mais uma seguidora de acampamento do que uma esposa,. até 1853, quando o abandonou na Argélia e se mudou para Paris. Sem o reconhecimento de sua união, a posição dela ao lado de Quatrefages era de uma “amiga”. Elisa não podia ser apresentada socialmente aos colegas do marido no Exército francês. Se ele o fizesse, correria o risco de ser afastado do corpo dos oficiais. Em 1853, ela o abandona e se muda para Paris.

    Assim que conheceu Solano López e se apaixonou, Elisa decidiu deixar a Europa para acompanhá-lo. No dia 10 de novembro de 1854, ela embarcou em Bordeaux, na França, para Buenos Aires, principal porto de acesso ao Paraguai, onde viveria por quinze anos. Solano ainda não era presidente nessa época: ele sucederia ao pai, Carlos Antonio López, após sua morte, em 1862.

    Apesar de Elisa não ter sido casada oficialmente com Solano López, ele reconheceu a paternidade dos seis filhos que tiveram juntos e até o do primeiro marido. O ditador cobriu-a de riqueza e propriedades, e Elisa tornou-se uma das mulheres mais ricas do mundo na década de 1860, mas os dois nunca moraram sob o mesmo teto. Ela chegou até a ser conhecida como rainha não coroada do Paraguai.

    Atraente e sofisticada, Lynch exerceu uma influência duradoura sobre o estilo, a moda e a vida cultural dos paraguaios, especialmente na capital, Assunção. Ela introduziu a polca e os cardápios franceses nos costumes do país e montou os primeiros teatros privados, entre outros exemplos de iniciativas culturais. Quando se aventurava a sair vestida à la parisienne, via como Assunção era uma cidade verdadeiramente pequena ao perceber o espanto que provocava. A população não chegava a 20 mil pessoas. Destas, só cerca de 1.500 pertenciam à elite branca e hispânica, diferenciando-se da maioria, índio guarani e mestiça. Este grupo restrito, que incluía a família de López, rejeitava a irlandesa, mas ela era muito querida pelos pobres. Frequentava a casa de mulheres da classe popular, dançava em suas festas.

    Em 1864, quando a guerra estourou, a companheira de Solano López tinha 30 anos. Na falta de qualquer menção a Elisa nos arquivos paraguaios e à distância dos acontecimentos explosivos da guerra, a maioria de seus biógrafos se baseou principalmente em incontáveis testemunhos coléricos e facciosos. A maior parte das acusações contra ela foi feita depois de 1869, quando os brasileiros instalaram um governo provisório no Paraguai. Era uma administração composta de membros da elite que odiavam Elisa, muitos dos quais integraram a “Legião paraguaia da Argentina”, lutando contra seu próprio país.    

    Fora do Paraguai, o ponto de vista predominante até hoje é que Elisa exerceu influência ilimitada e malévola sobre López. Acredita-se que ela criou nele a ambição de ser o Napoleão da América do Sul, levando-o a iniciar a guerra. Em seus últimos anos, teria até incitado López a cometer crueldades contra seu próprio governo e o povo, contribuindo para a tortura e a execução de centenas de cidadãos. O então embaixador norte-americano no Paraguai, Charles Washburn, publicou em 1871 um volumoso relato sobre a guerra – de quase mil páginas. Sobre Elisa Lynch, ele escreveu: “a esta má, egoísta e impiedosa mulher devem ser atribuídos muitos dos inúmeros atos de crueldade do seu companheiro ilícito. O fato de ela ser a causa direta da prisão, tortura e execução de milhares das melhores pessoas do Paraguai não nos deixa a menor dúvida”.

    Existe uma vasta literatura equivocada sobre Elisa em espanhol e em português, e seu nome chegou a aparecer no livro World’s Wickedest Women (“As mulheres mais perniciosas do mundo”), da escritora inglesa Margaret Nicholas, publicado em 1984. Segundo o livro, Elisa teria seduzido e roubado franceses, britânicos e russos eminentes antes de enfeitiçar Francisco Solano López.

    Dentro do Paraguai, no entanto, a atuação de Elisa Lynch foi vista por muitos de forma positiva, principalmente pela classe popular. Em 1961, foi declarada heroína nacional pelo ditador paraguaio Alfredo Stroessner e por seus apoiadores: a classe política nacionalista e a direita da época. Ela também foi vítima da guerra: estava presente no desolado anfiteatro das montanhas de Amambay, palco da última batalha do conflito em Cerro Corá. Encontrou Solano López quando ele tinha acabado de ser atingido por soldados brasileiros. Seu filho mais velho, Panchito, com 15 anos, tentou defender a mãe dos soldados. Apesar dos gritos de protesto de Elisa, ele se recusou a render-se aos brasileiros. Morreu nos braços da mãe.

      Com o fim da guerra, Elisa, com a reputação arruinada e destituída do poder, decidiu retornar à Europa. Foi levada pela necessidade de educar e sustentar os três filhos que sobreviveram, dos sete que tinha. Para reaver o dinheiro usurpado pelo seu agente escocês, William Stewart, médico-chefe do Exército paraguaio durante o conflito, entrou com uma ação litigiosa na corte britânica. Uma tentativa que não deu certo. Em 1875, quando Lynch voltou a Assunção, também não conseguiu retomar suas propriedades.  

    O ensaio autobiográfico Exposición y Protesta, publicado pela primeira vez em 1875, foi sua última reação pública à experiência no conflito. No relato de mais de vinte páginas, afirma: “Fui o alvo da fúria aparente dos homens que subiram ao poder no Paraguai, para governar sobre as ruínas de sua opulência e grandeza”. A partir de então, seu destino foi o anonimato. Elisa Lynch tinha 52 anos quando morreu em seu apartamento em Paris, no dia 25 de julho de 1886.

    A guerra deixou grandes perdas de todos os lados. Cerca de 70% da população do Paraguai morreu, assim com 50 mil soldados brasileiros e 15 mil argentinos. Quatro anos depois do conflito iniciado em 1864, o duque de Caxias, comandante militar supremo da Tríplice Aliança, implorou a D. Pedro II (1825-1891) que acabasse com a campanha, já que o Paraguai havia sido derrotado. Mas o imperador insistiu para que a guerra continuasse sob o comando de seu genro, o conde d’Eu (1842-1922), marido da princesa Isabel.

    Alguns historiadores e intelectuais do Brasil até hoje mantêm uma “má consciência” das atrocidades generalizadas e da fome em massa dos dois últimos anos da Guerra no Paraguai (1868-70), ainda descrita por muitos paraguaios como um “genocídio”. Seria importante que o Brasil fizesse um gesto de “reconciliação” neste sentido.
     
    Michael Lillis, ex-embaixador irlandês na ONU, e Roman Fanning, historiador, são os autores de Calúnia – Elisa Lynch e a Guerra do Paraguai (Editora Terceiro Nome, 2009).

    Saiba Mais - Bibliografia

    BARRET, William. Woman on Horseback, the Biography of Francisco Lopez and Eliza Lynch. Nova York: Fredrick A. Stokes Company, 1938.
    BRAY, Arturo. Hombres y Epocas del Paraguay. Buenos Aires: Ed. Ayacucho, 1943.
    BATISTA, Fernando. Elisa Lynch, Mulher do Mundo e da Guerra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1986.
    DORATIOTO, Francisco. A Guerra Maldita. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.