Prestígio e preconceito

Andréa Santos Pessanha

  • O projeto abolicionista de Rebouças (1883), com a chancela da Confederação Abolicionista. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A escravidão chegava ao fim e anunciava-se a República, mas teorias raciais estavam longe de ser abolidas: continuavam proclamando a inferioridade dos africanos e de seus descendentes. Ainda assim, André Pinto Rebouças reconhecia publicamente sua identidade: “Sinto-me feliz por ter sido escolhido pelo Bom Deus para representar a Raça Africana a Vossa Majestade Imperial e à Princesa Redentora”. Transitando com desenvoltura entre a nobreza e a aristocracia do Rio de Janeiro, o intelectual, engenheiro, professor e abolicionista viveu de perto o prestígio. E também a rejeição. 
     
    Neto do alfaiate português Gaspar Pereira Rebouças e da liberta Rita dos Santos, André nasceu em 1838 na cidade de Cachoeiras, província da Bahia. Era filho de Carolina Pinto Rebouças e de Antônio Pereira Rebouças, um advogado autodidata e conselheiro do Império. Nos anos 1850, preparou-se ao lado do irmão – que tinha o mesmo nome do pai – para os concursos da área militar. A dupla, que ficaria conhecida como “os irmãos Rebouças”, não foi aceita pela Escola da Marinha. Matriculou-se, então, na Escola Militar e de Aplicação do Exército.
     
    Com o título de engenheiro recebido em 1860, André Rebouças envolveu-se em vários projetos nesse ramo. Foi o responsável pelas obras das docas da Alfândega e das docas D. Pedro II, ambas no Rio de Janeiro, e da Companhia Florestal-Paranaense. Esteve à frente de mudanças na fortaleza de Santa Cruz, em Santa Catarina, de estudos sobre portos e docas em Pernambuco, Maranhão e Bahia e de melhorias no abastecimento de água da Corte. Vários projetos de Rebouças não foram viabilizados em função da burocracia e das redes de influência envolvendo os serviços urbanos no Império. Na condição de Voluntário da Pátria, participou da Guerra do Paraguai (1864-1870), fazendo parte do Corpo de Engenheiros do Exército.
     
    A atuação como professor começou em 1867 na Escola Central, mais tarde denominada Escola Politécnica. O objetivo da instituição era formar uma equipe de engenheiros civis habilitados para resolver as deficiências urbanísticas da sede imperial. Seus alunos e professores constituíram a base intelectual para a criação do Clube de Engenharia, do qual Rebouças foi sócio-fundador, em 1880. O engenheiro buscava reforçar o comprometimento do clube com os problemas sociais e econômicos brasileiros, e acreditava que cabia à entidade realizar o cadastro geral das terras do Império. Para ele, a revisão da estrutura fundiária era tão importante quanto a abolição da escravatura e a imigração europeia. Estes três elementos, acreditava, formariam o tripé para que o Brasil caminhasse rumo ao progresso e à civilização. 
     
    Rebouças, monarquista convicto, acompanhou no exílio D. Pedro II (gravura acima) e a família imperial. Ele sempre cultivou sentimentos de estima e devoção para com o imperador. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Hoje, sua imagem é mais facilmente associada aos feitos como engenheiro do que ao abolicionismo – até porque seu nome batiza o mais conhecido túnel do Rio (homenagem não só a ele como ao irmão Antônio). Mas nem só de louros viveu Rebouças. Ele também teve de encarar situações de discriminação, tanto no Brasil como no exterior. Ainda jovem, a Escola Militar e de Aplicação negou-se a subsidiar sua ida à Europa para aprimoramento técnico. A decisão, ele escreveu em seu diário, teria sido “por um maldito preconceito de cor”. 
     
    Quando viajou aos Estados Unidos, nos anos 1870, também sentiu na pele o preconceito. Em Nova York, teve empecilhos em sua hospedagem, resolvidos graças à interferência do consulado brasileiro. Mesmo assim, algumas restrições continuaram, como a de frequentar o restaurante do hotel. Segundo seus registros pessoais, chegou a ficar dois dias sem realizar as refeições em razão do “prejuízo da cor”. 
     
    Tais episódios não impediam que André Rebouças mantivesse relações próximas com setores privilegiados da sociedade brasileira. O abolicionista foi um homem das elites oitocentistas. Era amigo de D. Pedro II, de ministros do Império, do Conde d’Eu, de Joaquim Nabuco e de Alfredo Taunay, além de ter apadrinhado o filho primogênito do compositor Carlos Gomes, batizado Carlos André Gomes. Recebia, inclusive, vários pedidos de caráter pessoal de integrantes das elites, especialmente quando foi o responsável pela obra das docas da Alfândega no Rio de Janeiro. A marquesa de Olinda, por exemplo, solicitou que mantivesse trabalhadores ligados a ela naquele empreendimento, pois era uma forma de renda e demonstração de prestígio.
     
    Segundo Taunay, sua amizade com o engenheiro teve início nos anos 1870, e era estimulada por um gosto musical em comum: as preferências artísticas de Rebouças estavam de acordo com os padrões ditos civilizados. Sua aparência também seguia a moda europeia: usava pequeno bigode e o cabelo curto cortado de lado. Falava fluentemente o italiano, o inglês e o francês. 
     
    Entre 1870 e 1880, Rebouças comparecia a quase todas as festas da Corte. E também abria as portas de sua casa para oferecer reuniões e bailes em que participavam “as pessoas mais finas e aristocráticas do Rio de Janeiro”. Taunay explica que o abolicionista tentava de todos os modos “suplantar e vencer as prevenções da cor”. Em uma determinada festa, o engenheiro não conseguiu um par para dançar. Ao saber disso, D. Pedro II solicitou à princesa Isabel que fosse acompanhá-lo. Em outras ocasiões, Rebouças não teve dificuldade de encontrar um par. Nos seus diários, relembra festas nas quais dançou sem melindres pelos salões. A recepção dependia, por certo, de sua posição social em cada evento: em algumas dessas ocasiões estava em situação privilegiada, pois era o engenheiro responsável por obras portuárias. 
     
    Alistado como Voluntário da Pátria na Guerra do Paraguai, Rebouças participou, entre outros enfrentamentos, da defesa de Tuiuti, em 1866. Acima, planta do acampamento e da batalha. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A alternância entre prestígio e rejeição sempre voltava à tona. Durante as construções das docas da Alfândega, o engenheiro tornou a fazer referência à sua cor, definindo-a como uma barreira às suas pretensões profissionais em um contexto de concorrência pela execução dos serviços urbanos. No diário, faz menção a uma carta anônima enviada ao Conde de Estrela – seu amigo pessoal e colaborador em alguns empreendimentos. O autor solicitava o afastamento do Conde da obra, “por conta da qualidade mulata” de Rebouças.
     
    Nessa trajetória de altos e baixos, como será que se enxergava o engenheiro e de que forma era visto pela sociedade? Toda identidade social se define por contrastes: só existe quando um grupo em contato com outro de características diferenciadas – étnicas, de classe ou de gênero – faz a distinção entre “nós” e os “outros”. Conforme suas experiências, interesses e o momento histórico, as pessoas podem transitar entre diferentes campos, pois as identidades sociais são dinâmicas. 
     
    Como diz a carta enviada ao Conde de Estrela, o engenheiro era considerado mulato pelos contemporâneos. A imagem que ele tinha de si também era essa. É o que evidenciam suas palavras a respeito da composição do movimento que pretendia dar um ponto final na escravatura: “Só três mulatos no Partido Abolicionista. É a minha maior dor”. 
     
    A partir da segunda metade do século XIX, porém, cor não se referia simplesmente à tonalidade da pele: adquiria também um sentido de qualificação social. Em geral, as palavras negros e pretos eram usadas como sinônimos de escravos. Por mais escura que fosse a pele de Rebouças, ele não seria tratado por estes termos. 
     
    Monarquista convicto, a ponto de exilar-se quando foi proclamada a República, ele afirmou, em 1891, que seu sentimento de gratidão ao imperador simbolizava a própria devoção da “raça africana”. Acreditava que as mudanças necessárias para o aprimoramento da nação seriam implementadas somente pela dinastia dos Bragança. Abolida a escravatura, passou a defender que o acesso a terra por libertos e imigrantes era o próximo passo para o desenvolvimento econômico-social do Brasil. 
     
    Rebouças morreu em 1898 na ilha da Madeira, costa africana, ao cair de um penhasco. A essa altura já estava constituído o pensamento de um homem descendente de liberto, pautado nos valores, nas aspirações e nos padrões culturais das elites intelectuais do Império. Um engenheiro e abolicionista que selecionou nas teorias raciais e no liberalismo os fundamentos para a construção de sua identidade e para a elaboração de propostas sociais que, a seu ver, levariam o Brasil à civilização e ao progresso. 
     
    Andréa Santos Pessanha é professora da Uniabeu, da Faetec/RJ e autora de Da abolição da escravatura à abolição da miséria. A vida e as ideias de André Rebouças (Quartet, 2005). 
     
    Saiba Mais
     
    ALONSO, Angela. Ideias em movimento. A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
    CARVALHO, Maria Alice. O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998.
    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
    TRINDADE, Alexandro Dantas. André Rebouças. Um Engenheiro do Império. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2011.