Primeira-e-eterna-dama

Antonio Edmilson Martins Rodrigues

  • O marechal Hermes e Nair, ao lado do cardeal Arcoverde, na escadaria do Palácio Rio Negro, em Petrópolis, depois do casamento religioso.Ousada, elegante, curiosa, sensual, brilhante e vanguardista são adjetivos que Nair de Teffé acumulou nos tempos em que vivia com o presidente Hermes da Fonseca, que governou de 1910 a 1914. Nessa época, ela parecia bem diferente da idosa de cabeça branca que, em seus últimos dias, andava pelas ruas de Niterói com um vestido de chita, calçando um chinelinho de pano surrado e com a bainha da roupa descosida. Sessenta anos separam os tempos de glória da jovem Nair dos derradeiros lampejos da senhora, que nunca abandonou uma certa arrogância da mulher fina que foi primeira-dama.

    Nair de Teffé nasceu em berço aristocrático em 1886, em Petrópolis. Filha do barão de Teffé (1837-1931), desde cedo seguiu o pai em suas andanças pelo mundo como cientista e diplomata. Com isso, viu de perto todo o esplendor da belle époque de Paris, onde passou a se dedicar à caricatura. Ela começou desenhando os narizes e os rostos das freiras do colégio Sante Ursele, e continuou desenvolvendo seu talento com as visitas que recebia em casa e as pessoas que frequentavam as praças da cidade. Era uma maneira de se comunicar que despertava sua inteligência e provocava sua verve.

    No entanto, essas caricaturas criavam situações conflitantes. Por ser mulher e jovem, ela recebia vários elogios, já que desenhar caricaturas era, na época, uma atividade exclusivamente masculina. Mas a ironia expressa pelos traços de Rian – pseudônimo que a artista assumiu, que era seu nome escrito de trás para frente – fez com que ela recebesse advertências. Basta observar as caricaturas de Nair-Rian nos diversos jornais e revistas –O Binóculo, A Careta, O Malho, O Ken, Fon-Fon, Gazeta de Notícias, Le Rire e Fêmina, entre outros – para se perceber com clareza de quem ela gostava ou não.

    Mas Nair não foi apenas a primeira caricaturista brasileira. Com outras mulheres cariocas, como a jornalista Eugenia Moreira (1898-1948) e a “diva dos salões” Laurinda Santos Lobo (1878-1946), ela agitou a sociedade ao flertar com o modernismo e as pretensões feministas da época. Mal sabia ela que suas ideias acabariam tendo eco junto à autoridade máxima do país e mudariam por completo o seu futuro.

    Como acontecia em todas as famílias cariocas da elite, os Teffé passavam os meses de verão em Petrópolis e tinham o hábito de andar a cavalo pela manhã. Nesses passeios, pessoas iam se misturando e acabavam formando grandes comitivas de cavaleiros. O barão de Teffé, conhecido por todos, era acompanhado quase sempre por sua filha e pelo presidente da República, Hermes da Fonseca (1855-1923), que ficara viúvo pouco tempo antes e utilizava esses passeios como terapia. Sagaz, Nair acabou despertando a atenção do marechal Hermes, mas não levou o flerte a sério. Desconfiava da amabilidade do marechal-presidente, de seu cuidado com ela quando fazia o cavalo galopar.

    A situação acabou provocando risadas quando, em um desses passeios, em janeiro de 1913, o presidente a pediu em casamento. Os risos não foram de arrogância, mas de surpresa; afinal, o presidente estava viúvo havia apenas seis meses, e mandava a tradição que o luto se fizesse por pelo menos um ano. Sem contar que os dois nunca tinham conversado mais intimamente e que havia uma grande diferença de idade entre eles: 31 anos. Mesmo assim, o casamento não demorou a se realizar. Nair se tornou primeira-dama em dezembro daquele mesmo ano, quando muita gente ainda censurava a atitude do presidente.

    Daí em diante, Nair dedicou sua vida ao marechal, acompanhando de perto todas as situações críticas vividas por ele, desde a construção do bairro de Marechal Hermes, no Rio de Janeiro, até as crises políticas enfrentadas por ele durante a chamada Revolução de 1922. Este movimento militar, conhecido como uma reação republicana, colocou em lados opostos Hermes da Fonseca e o presidente Epitácio Pessoa. A essa altura, Hermes era presidente do Clube Militar e entrou em choque com o presidente, apoiando a candidatura de Nilo Peçanha. Foi tamanha a dedicação de Nair ao esposo que, quando ela resolveu resgatar suas memórias, acabou se fiando num tema revelador da deferência dela para com o marechal: A verdade sobre a revolução de 1922.

    Durante a vida comum do casal, houve uma ebulição política constante que mostra bem como se deu o amadurecimento da caricaturista. No começo, a recém-empossada primeira-dama se deslumbrou com o poder, e seu comportamento acabou gerando algumas confusões. Certa tarde, durante um páreo no Hipódromo da Gávea, ela protagonizou um quase flerte. O ex-presidente da Argentina Julio Roca (1843-1914) foi convidado a participar da festa no Derby Club, cuja programação incluía um páreo em sua homenagem. O ex-presidente ganhou a aposta e, impressionado com Nair, deu-lhe o valor total do prêmio. Sem nenhum pudor, ela começou a fazer planos para gastar o presente. Mas seu pai, indignado, mandou a filha devolver a quantia, dizendo que uma moça decente não recebia dinheiro acompanhado de elogios. Porém, o que causou problemas de fato foi a festa que Nair promoveu no Palácio do Catete, na qual, acompanhada por Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), tocou o maxixe “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga (1847-1935). O rega-bofe gerou protestos do próprio Rui Barbosa (1849-1923), que reclamou no Parlamento da falta de decoro no Palácio presidencial.

    Esse episódio fez com que Nair percebesse que sua posição na República impunha limites. Por se sentir culpada pelas críticas recebidas pelo presidente, ela passou a defendê-lo em qualquer circunstância. Quando alguém ousava duvidar da falta de inteligência de Hermes da Fonseca, ela contra-atacava discorrendo sobre a dedicação do marechal aos livros e principalmente aos clássicos gregos. A vida nababesca de primeira-dama também foi seriamente abalada por um acidente que ela e o marido sofreram na estrada que ligava Itaipava a Petrópolis, em Corrêas. Não adiantou a presteza do marechal em levá-la aos melhores médicos europeus: Nair ficou manca para o resto da vida.

    Mesmo tendo sofrido esse infortúnio, ela se dedicou de corpo e alma ao marido, tornando-se sua principal fonte de segurança até seus últimos dias. Com a morte de Hermes, em 1923, ela se tornou melancólica, perdeu a aura que tinha, mas ainda assim tentou reagir, produzindo eventos em Petrópolis, principalmente peças teatrais, das quais participou como atriz, autora e diretora. O escritor Coelho Neto (1864-1934) chegou a escrever uma peça de sucesso, “MissLove”, especialmente para que ela brilhasse nos palcos. Esse sucesso fez com que o dramaturgo Leopoldo Fróes (1882-1932) a convidasse imediatamente para fazer parte de sua companhia. Mais tarde, ao criar a Troupe Rian, ela escreveu e dirigiu “O futurismo na caricatura”, cuja renda em Petrópolis foi toda aplicada em obras sociais.

    De volta ao Rio de Janeiro, ainda na década de 1930, ela se fixou em Copacabana, e usando a herança do pai, morto em 1931, comprou um terreno e nele construiu um cinema em homenagem ao barão. A sala de exibição, batizada de Rian, materializou, de certa forma, um sonho do pai, que dizia constantemente que um dia colocaria a filha entre as estrelas. Mas a tristeza por ter que ir morar no Hotel Glória em 1946 e de não conseguir o sonhado apartamento na Rua Paissandu, que ela tanto adorava, levou-a à depressão e, segundo pessoas próximas, ao jogo. O vício fez com que ela perdesse uma ilha na baía de Angra dos Reis, chamada Francisca, que lhe havia sido dada pelo marechal.

    Nos anos seguintes, Nair adotou três ou quatro crianças e foi morar na região rural de Pendotiba, em Niterói, optando por uma vida reclusa. Vivendo em condições econômicas difíceis, ela lutou por todos os meios para ter uma velhice tranquila, e novamente se valeu de sua ironia para sobreviver. Certa vez, na década de 1970, foi chamada a responder à Receita Federal por que não pagava Imposto de Renda, quando o ministro da Fazenda era Delfim Netto, e não teve dúvida: pegou o formulário e o preencheu a seu modo. O funcionário do governo deve ter se surpreendido quando abriu o documento de Rian e percebeu que ela não havia escrito nada do que era solicitado. Apenas fez a caricatura do ministro.

    É nesse contexto que se explica o elogio feito por Nair ao presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), que reconheceu em 1970 que ela deveria receber integralmente a pensão de Hermes da Fonseca, luta à qual se dedicava desde a morte do marido. Conquistado esse direito, ela conseguiu voltar para a área urbana, no bairro de Icaraí, onde pôde criar seus gatos e cachorros, companheiros até seu derradeiro instante de vida. Nair de Teffé morreu em 10 de junho de 1981, exatamente no dia em que completou 95 anos de idade.

     

    Antonio Edmilson Martins Rodriguesé professor da PUC-Rio e da Uerj, e autor de Nair de Teffé, vidas cruzadas (FGV, 2002).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    AMARAL, Solange Mello do. Nair de Teffé. Discurso autobiográfico: o caso. Rio de Janeiro: Editora do Museu da República, 2007.

    LIMA, Herman. A história da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

    SANTOS, Paulo Cesar dos. Nair de Teffé, símbolo de uma época. Petrópolis: Sermograf Editora, 1983.

    TEFFÉ, Nair de. A verdade sobre a Revolução de 22. Rio de Janeiro: Gráfica Portinho Cavalcanti, 1974.