Se você é uma jovem e está assustada diante dos desafios do casamento e da criação dos filhos, não precisa se desesperar. Existe uma amiga sábia e experiente disposta a orientar você nessa difícil fase da vida. Seu nome é D. Júlia.
Não é uma mulher como as outras. Jornalista, autora de romances, contos, crônicas, peças teatrais, livros infantis e educativos, Júlia Lopes de Almeida ainda arranja tempo para militar em variadas frentes na vida pública, e está envolvida com o nascente movimento feminista neste final do século XIX. Mas suas posições de vanguarda não devem espantar a leitora comum. D. Júlia sabe que o mais importante na vida de uma mulher é dedicar-se ao lar e aos filhos.
Filha de um médico e professor, descobriu cedo a vocação literária. Não tinha nem 20 anos quando, incentivada pelo pai, fez sua estréia na imprensa com uma reportagem na Gazeta de Campinas, em 1881. Nela, traçava um perfil da atriz italiana Gemma Cuniberti. Novas oportunidades profissionais logo surgiram, agora no Rio: D. Júlia, como passou a ser conhecida, foi convidada a escrever em vários periódicos. Entre eles, A semana, onde conheceu o poeta português Filinto de Almeida, com quem se casaria. No jornal O País, publicaria durante mais de trinta anos uma coluna chamada “Dois dedos de prosa”.
Aos poucos, começou a publicar também textos de ficção. O primeiro romance foi A família Medeiros (1892), depois do qual vieram dezenas de livros. Mas em qualquer veículo ou gênero literário, um tema dominava suas preocupações: a condição feminina na sociedade.
A mulher brasileira conhece que pode querer mais do que até aqui tem querido; que pode fazer mais do que até aqui tem feito. (...) Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos e mais felizes são aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento – defendia, nas páginas do primeiro número da revista A Mensageira, em 1897.
Palavras que no final do século XX soariam banais, no seu tempo eram impactantes. Vivia-se um período marcado pela instabilidade no Brasil – “horas vertiginosas e perturbadoras”, segundo D. Júlia. Com a abolição da escravidão e o fim da monarquia, o país enfrentava um processo de transição importante: era a passagem de uma sociedade senhorial, de base essencialmente agrária, para uma burguesa, progressivamente urbana e industrial. Nesse quadro de mudanças, as mulheres deixavam de se dedicar apenas ao espaço privado da casa, adaptando-se às novas relações sociais da cidade e a desafios de educação e formação profissional. Percebendo a reviravolta que ocorria no universo feminino, D. Júlia decidiu produzir livros especialmente para elas, nos quais pudesse falar de mulher para mulher.
Seus manuais para moças tornaram-se sucessos editoriais, reeditados várias vezes. A estréia no gênero foi em 1896: o Livro das noivas era voltado para jovens inexperientes que se encaminhavam para o casamento. Para criar um tom de intimidade com essas leitoras, ela deu seu próprio nome à personagem que conduz a narrativa. D. Júlia é apresentada como uma “velha conhecida”, que vivencia experiências semelhantes às das mulheres comuns, das mães e esposas com as quais procura dialogar. É “uma mulher como as outras”, que encontra “naturalmente” nos filhos, no cuidado com a saúde e com a educação deles sua máxima realização.
Se como personagem ela criava esta identificação com seu público, na vida social D. Júlia assumia um lugar diferenciado, uma trajetória particular. A escritora se notabilizava por sua grande popularidade e sucesso de crítica em um mundo letrado eminentemente masculino. Junto a Filinto de Almeida, participou das reuniões para a criação da Academia Brasileira de Letras, mas, ao contrário de seu marido, não pôde integrar a instituição, fundada em 1897 – afinal, era mulher. Já no início do século XX, integraria a Legião da Mulher Brasileira ao lado de feministas notórias como Bertha Lutz (1894-1976).
Construía, assim, duas imagens totalmente diferentes, mas que em suas obras conviviam em harmonia. Sem deixar de ser uma esposa zelosa e mãe dedicada, D. Júlia tinha experiências que contrastavam com aquelas vividas pela maioria das mulheres. Dominava saberes que suas leitoras não tinham, e assumia a missão de transmiti-los.
O Livro das donas e donzelas, lançado em 1906, também tem formato explícito de manual. Mas desta vez D. Júlia se dirige às leitoras como “amigas”, já dotadas de uma vivência a considerar. Como o primeiro manual, este vinha recheado de prescrições sobre os mais variados temas, considerados essenciais para a vida de uma boa dona-de-casa, esposa e mãe de família: o vestuário, as regras de sociabilidade, a caridade, o cultivo de flores. As mensagens do texto eram reforçadas por imagens e desenhos reproduzindo cenas do ambiente doméstico e de situações familiares. Em meio a lições diversas, destacavam-se as duas funções femininas principais: o cuidado com a saúde e com a educação dos filhos.
Segundo os conselhos de D. Júlia, essas preocupações deveriam ser colocadas à frente de qualquer conveniência social. O papel de educadora era definido por ela como “a mais pura, a mais justa, a mais ampla, a mais bendita (missão) entre as benditas”, ou ainda como “um encargo que nenhuma mãe deveria declinar de si”. Isso porque “nenhum mestre pode ser mais insinuante, mais querido, mais doce, mais persuasivo do que a mãe!” Esse saber baseado no sentimento materno vinha de uma sensibilidade preexistente, mostrada como inerente à condição feminina.
Por outro lado, os manuais alertavam as leitoras sobre o perigo de viver “do coração exclusivamente”. Sensibilidade, bondade, fragilidade e outros atributos considerados naturalmente femininos não seriam suficientes para a mulher cumprir bem os seus papéis. Para obter resultados eficazes na criação dos filhos, era preciso investir em sua própria educação. E era a partir desse ponto que D. Júlia inseria em seus conselhos noções inovadoras sobre a mulher de seu tempo. Ela precisava ter conhecimentos pedagógicos, que indicassem caminhos sobre “como educar”, e médicos, em especial os de higiene, área da ciência já bastante desenvolvida na época.
A formação apropriada da mulher era fundamental porque produzia efeitos para além dela própria: beneficiava a vida dos filhos e, conseqüentemente, repercutia em favor dos futuros cidadãos e de toda a sociedade. Para cumprir a contento sua “missão” educativa, a mãe contava, como ponto de partida, com sua “natureza” – mas era preciso complementá-la na cultura. Em síntese: “É principalmente essa missão que deve induzir todas as moças a ler e a estudar com atenção. Aprender para ensinar, com inteligência, alegremente, maternalmente!”
Essas prescrições ficam ainda mais evidentes em Maternidade, lançado quase duas décadas mais tarde. Inicialmente publicado em capítulos no Jornal do Comércio, em 1924, foi editado em livro no ano seguinte. Àquela altura, a escritora pretendia ir além do universo visto tradicionalmente como feminino. Afinal, os tempos eram outros. D. Júlia fala sobre a Primeira Grande Guerra (1914-1918) e expressa seu engajamento pacifista.A singularidade da obra também se traduz em sua composição gráfica, sem ilustrações, e na secura do texto. A partir de um posicionamento militante, D. Júlia se dirige não só ao público feminino, mas estende sua mensagem à sociedade de maneira geral, abordando questões relativas ao lugar da mulher na esfera social.
O título dado ao livro é significativo, revelando a intenção da autora: um convite à reflexão sobre o tema da guerra, pela ótica das mães que perdem seus filhos nos campos de batalha:
É dever de todo escritor que mal ou bem pôs na Torre do Pensamento a lanterninha do seu nome, dizer o que sente sobre o problema mais aflitivo de todos os tempos – a guerra –, sobretudo quando esse escritor é mulher e contribuiu com o seu sofrimento e o seu sangue para o acréscimo da humanidade.A atuação da mulher na vida pública era uma projeção de sua atuação no âmbito privado. Este aspecto, pouco abordado nos dois primeiros livros, assume em Maternidade um lugar central. O envolvimento da mulher na luta contra a guerra seria resultado natural do sentimento de proteção ao filho. E a autora não se restringe a esse argumento: segundo ela, a contribuição feminina pode transformar a sociedade. Para isso, seria necessária uma nova atitude política por parte delas, pautada em uma maneira particularmente feminina de perceber o mundo, não caracterizada por um sentimentalismo ingênuo, mas pela reflexão racional motivada pelo sentimento. “O gênio do homem poderá plantar novos ideais no cérebro humano, mas só na bondade criteriosa da mulher e na clarividência do seu espírito bem convencido encontrará o mundo verdadeira base para a sua futura civilização. Ainda somos bárbaros”, escreve.
As duas Júlias – de um lado, esposa e mãe de família, de outro, escritora, educadora e militante – não se contradizem. Juntas, compõem a lição que melhor sintetiza o projeto educativo da autora: “O papel mais difícil é e será sempre o da conciliação, e é esse que todas as mulheres, mesmo as mais extremadas nos seus ideais, deveriam desempenhar”.
Talvez tenha sido este o segredo de sua popularidade. Os conselhos de D. Júlia não confrontam as regras estabelecidas pela sociedade para a mulher, mas partem desses papéis para reivindicar mais instrução e independência, ampliando o campo de ação da mulher na sociedade. Júlia Lopes de Almeida não parou de escrever até o ano de sua morte, 1934. Seguiu uma estratégia de vida que resumiu assim: “Nascemos, morremos, e no intervalo de uma ou outra ação, vivemos a vida que o nosso tempo nos impõe”.
O que o seu tempo impunha era a adoção de métodos sutis, por meio dos quais a figura feminina, lentamente mas de maneira eficaz, deixaria sua marca. Assim aconselhou D. Júlia. E assim o fez.
Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi é professora de História da Educação da Faculdade de Educação da Uerj e autora de Lições de casa: discursos pedagógicos destinados à família no Brasil. (Argvmentvm, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia:
ALMEIDA, Julia Lopes de. Correio da roça. 7ª ed. Rio de Janeiro/Brasília: Presença; Instituto do Livro, 1987.
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
PEREIRA, Lucia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1994.
TELLES, Norma. “Escritoras, escritas, escrituras” in PRIORE, Mary Del (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
Primeiro os filhos, depois o mundo
Ana Maria Magaldi