Bastou a prensa tipográfica ser inventada e o mundo da época soube o que fazer com ela: fortalecer a religião. Durante a baixa Idade Média, padres da Igreja Católica precisavam de orientação extra para saber como agir conforme os cânones sagrados. Foi com o objetivo de instruir os clérigos da Península Ibérica que Clemente Sánchez de Vercial escreveu O Sacramental, um livro didático e pedagógico para todas as gerações de religiosos. A obra fez tanto sucesso que foi o primeiro livro impresso em português. Hoje, se encontra na divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Clemente Sánchez de Vercial nasceu em 1370, na cidade de Sepúlveda, província castelhana da Segóvia, e morreu em 1426. Era bacharel em leis e foi arcediago de Valdeiras, na igreja de León (atual Espanha), onde provavelmente produziu suas obras. O Sacramental original foi escrito em castelhano entre 1421 e 1423, destinado ao clero que desconhecia outros idiomas que não o seu de nascença. A maioria das obras que continha as doutrinas da Igreja era produzida em latim, língua oficial da instituição.Naquele século houve um aumento na produção de obras doutrinárias. Elas faziam imenso sucesso entre a população que mais tinha acesso à leitura, ou seja, os próprios religiosos. O Sacramental chegou a Portugal e foi traduzido entre 1450 e 1488, mas não se sabe quem foi o responsável pela empreitada. Esta última data coincide com os primórdios do estabelecimento da imprensa no reino português. Os judeus destacavam-se na arte tipográfica imprimindo textos em hebraico, enquanto raros católicos imprimiam textos de cunho cristão. Destes, alguns imprimiram em latim e outros em português. O primeiro a se dedicar à língua vulgar foi um tipógrafo da cidade de Chaves. Ele imprimiu O Sacramental em 1488.Por muito tempo, alguns pesquisadores acreditaram que o surgimento da tipografia, um fenômeno do Renascimento, teria ajudado na divulgação de obras gregas e latinas. A história, no entanto, mostra que foi mesmo a religião o tema predominante dos primeiros livros impressos. Não à toa, a primeira publicação em tipografia do Ocidente foi a Bíblia de Gutenberg (1455). A produção de obras doutrinárias expandiu-se na proporção das tipografias. O Sacramental foi uma das obras impressas mais reeditadas entre os séculos XV e XVI na Península Ibérica. No total foram 20 edições, sendo 16 em castelhano, uma em catalão e quatro em português – destas, além da que existe na Biblioteca Nacional (que pertenceu a João Antonio Marques e foi doada à instituição em 1889/1890), há uma produzida em Braga entre 1494 e 1500, uma em Lisboa em 1502 e outra novamente em Braga, em 1539. Por diferenças nas características tipográficas, acredita-se que a edição que se encontra no Brasil é a mais antiga, e não se conhece nenhum outro exemplar dessa impressão de 1488.Chama a atenção que o primeiro incunábulo (nome dado aos livros impressos até o ano de 1500) português tenha sido produzido na pequena cidade de Chaves e não em um centro populoso com um ambiente cultural mais produtivo – como Lisboa ou Coimbra. Por esta razão e pela ausência do colofón – página da obra onde se colocam as informações referentes à sua produção, como local, data e nome do produtor – desconhecem-se as informações sobre a tipografia que o imprimiu. Devido ao caráter rudimentar dos caracteres metálicos utilizados na sua impressão e ao excesso de abreviaturas, se comparado a outras edições castelhanas do mesmo período, é possível afirmar que o produtor tinha pouca experiência. A escrita é de estilo gótico e dividida em duas colunas com parágrafos que incluem capitulares vermelhas. Não há imagens nem decorações, como nas edições posteriores.Numa época em que a língua não estava institucionalizada, a tradução se deu de forma incompleta. Há diversas palavras castelhanas ou castelhanizadas, como: grados (graus) e su madre (sua mãe). Segundo o professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, José Barbosa Machado, a edição é bastante caótica do ponto de vista gráfico e linguístico – outras obras portuguesas do período sofreram emendas, atualizações e alterações gráficas, fonéticas, lexicais e sintáticas.A obra contém 318 páginas e é dividida em três livros. No primeiro, o autor aborda os artigos de fé, os mandamentos, os pecados mortais, as virtudes e as obras de misericórdia. Nos outros dois, seu objetivo é instruir o clero para a prática dos sete sacramentos da Igreja. Já no prólogo, anuncia: “minha intenção foi e é de tratar principalmente dos sacramentos, fiz denominação e pus nome a este livro sacramental”. Na parte principal do livro, há uma breve e genérica introdução sobre o que é um sacramento, seguida da explanação de cada um deles segundo o método escolástico: exposição doutrinal e casuística própria de cada um.Clemente Sánchez de Vercial transcreve, quase sempre em forma de lista, as normas retiradas de textos canônicos. Procura não arriscar uma opinião própria e, quando o faz, emite-a de forma curta ou parafraseia aquilo que já é institucionalizado pela Igreja. Na prática, O Sacramental serve de manual no qual o clérigo pode encontrar todas as práticas e preceitos católicos, baseado em seu livro principal, a Bíblia, e em textos de grandes teólogos. “E por quanto por nossos pecados no tempo de agora muitos sacerdotes que tem curas de almas não somente são ignorantes para instruir e ensinar a fé e crença e as outras coisas que pertencem à nossa salvação, mas ainda não sabem o que todo bom cristão deve saber nem são instruídos nem ensinados na fé cristã segundo deviam, e o que é mais perigoso e danoso, alguns não sabem nem entendem as escrituras que cada dia hão de ler e tratar. E porém, eu Clemente Sánchez de Vercial, bacharel em leis, arcediago de Valdeiras na Igreja de León, ainda que pecador e indigno, propus de trabalhar de fazer uma breve compilação das coisas que necessárias são aos sacerdotes que hão curas d’almas”, escreve o autor.
Apesar do caráter pedagógico e das cópias de textos religiosos, O Sacramental também aborda questões do cotidiano do homem medieval, como a alimentação, a sexualidade, o trabalho, o descanso, a saúde, a doença, as relações sociais e familiares, além, claro, dos usos e costumes da religião. Na exposição sobre a Penitência, por exemplo, foram incluídos dois documentos que falam muito sobre o sentimento religioso e três capítulos aparentemente deslocados, mas que abordam práticas religiosas comuns no período. O primeiro documento é uma Apologia dos pecados, espécie de exame de consciência da pessoa que se confessa. O segundo é uma Summa confessorum, orientação ao confessor sobre o interrogatório, que ajuda na decisão sobre a penitência a ser cumprida. Já os capítulos abordam os temas da esmola, do jejum e da oração, todos eles formas de reparação bastante utilizadas mesmo sem a indicação de penitência do confessor, podendo ser praticadas juntas ou separadas, conforme a gravidade dos pecados cometidos ou o ímpeto religioso de seu praticante.A obra foi amplamente divulgada na Península Ibérica até meados do século XVI, quando acabou censurada pela Inquisição Moderna. Ela foi adicionada ao Index (lista de livros proibidos pela Igreja) antes do fim do Concílio de Trento (1545-1563). Isto ocorreu primeiro na Espanha, pelo primeiro Inquisidor-Geral, em 1559, e depois em Portugal, pelo ocupante do cargo correspondente, em 1561. Não se sabem os motivos pelos quais a Inquisição proibiu sua leitura. É provável que tenha sido pela impressão em língua vulgar, que contrariava a orientação do Concílio tridentino de que a instrução dos padres fosse feita apenas em latim. O Concílio também institucionalizou os seminários, nos quais o clero secular aprendia sobre suas práticas com a supervisão direta da Igreja. O Sacramental não seria mais necessário.Carolina Ferro é coordenadora de pesquisa da RHBN e pesquisadora do Scriptorium da Universidade Federal Fluminense.Saiba mais:HORCH, Rosemarie Erika. "Luzes e Fogueiras: dos Albores da Imprensa ao Obscurantismo da Inquisição no Sacramental de Clemente Sánchez". 2 vols. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 1985.MACHADO, José Barbosa. "Equabilidade linguística e textual nas quatro edições portuguesas do Sacramental de Clamente Sánchez de Vercial". Revista Encruzilhadas/Crossroads, p. 1-8, 2006. Disponível em: http://193.136.19.140/vercial/zips/machad12.pdf
Primeiro sacramento
Carolina Ferro