Em um prédio do século XIX localizado em Fortaleza, uma papelada que conta o cotidiano, os conflitos e os costumes dos antigos habitantes do Ceará e do Brasil está sendo cuidadosamente digitalizada: são os papéis da Chefatura de Polícia da Província do Ceará. Cerca de 60 mil documentos do Arquivo Público, que vão de 1826 até 1889, mostram relatos de escravos fugidos, a entrada e a saída de mercadoria nos portos, registros de soldados que participaram da Guerra do Paraguai, eleições, relatos de violência contra a mulher, e até atitudes bem avançadas para a época. “Apesar de ter essa denominação de chefatura, percebemos que há ali uma enorme pluralidade de documentos manuscritos do período do Império”, afirma Marcio Porto, diretor do Arquivo Público do Ceará.
Algumas questões sobre gênero no Império podem ser identificadas em meio aos registros, como o caso de mulheres que se revoltaram contra abusos e contra o padrão de comportamento feminino da época. “Algumas mulheres chegaram a solicitar diretamente ao presidente [da Província] que pudessem lutar em guerras”, explica Cleidiane da Silva, aluna da Universidade Federal do Ceará e estagiária do Arquivo.
Há papéis raros, como os que mostram os conflitos no cotidiano da Província, inclusive dentro da própria Chefatura. Ou o relato e a imagem de um escravo que conseguiu escapar do cativeiro. “É um registro raríssimo; fotografias não eram algo comum, ainda mais uma fotografia de identificação de um escravo que fugiu”, explica Fabiano Matos, historiador responsável pelas pesquisas dos documentos.
Segundo Porto, há ainda registros de conflitos entre famílias importantes do Ceará, prisões de estrangeiros, ciganos e a criminalização desses grupos, registros de eleições e problemas ligados à seca. “São documentos que abrem um enorme leque de pesquisas acadêmicas sobre a história social, sobre a violência, e que permitem um enriquecimento da produção historiográfica não só do Ceará, mas nacionalmente”, acredita o diretor.
Após a digitalização, os documentos devem ficar disponíveis para serem acessados pela internet. O diretor do Arquivo Público do Ceará afirma que há um prazo de dois anos para que o projeto se conclua, mas ele promete entregar antes disso. “Nós receberemos um laboratório de digitalização, além de o edital prever a capacitação de alguns profissionais para esse trabalho”, afirma Porto sobre o concurso da Petrobras que eles ganharam.
Todos os documentos passaram por um processo antes e depois da digitalização. É preciso que se tenha um cuidado especial no contato com os papéis. Para manuseá-los, é necessário estar com máscara e luvas. As tintas usadas nos arquivos do século XIX eram feitas à base de ferro e o contato com a umidade pode danificar os documentos irremediavelmente, o que faz da consulta a esses registros algo extremamente trabalhoso, mas também prazeroso.
Público desarquivado
Fernanda Távora