Punk é atitude

Ivone Gallo

  • Defina um punk nos dias de hoje, se puder. Seria ele o skinhead intolerante às diferenças, nacionalista, defensor de valores conservadores? Seria o black bloc anticapitalista, herdeiro da ideologia e das táticas anarquistas? Seria o hacker, que se apropria das tecnologias para invadir as brechas do sistema e denunciar suas desigualdades? 
     
    As diferentes faces do punk, que o têm tornado inapreensível para o poder e garantido a sua sobrevivência na história, poderiam também estar afastando-o da crítica social? Se atualmente o termo se presta a uma pluralidade de expressões e interpretações, em sua origem e trajetória inicial o punk refletiu a ousadia de rebeldes cujas ações e comportamentos radicais visaram mudar os rumos da história. 
     
    Desde os anos 1960, por meio da contracultura e do movimento hippie, a juventude vinha contestando aspectos das relações sociais e da política vigentes, como a família tradicional e o consumo e a produção na economia de massa. Essa disposição para questionar o presente, que contaminava também o mundo adulto, viria a explodir nas décadas seguintes sobre novas bases. 
     
    Os primeiros signos da revolta cultural associada aos punks se apresentaram entre jovens da Inglaterra e dos Estados Unidos ao longo da década de 1970. Eles adotavam atitudes transgressivas, usavam vestimentas tidas como extravagantes e utilizavam linguagem considerada chula. Parte da revolta se devia à situação socioeconômica desses países, onde a pressão de grupos conservadores ampliou políticas neoliberais restritivas aos direitos sociais, ao emprego e aos canais de expressão do descontentamento. Aprofundadas nos anos 1980 – sob comando de Margareth Tatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos – tais políticas logo assumiram um caráter global. 
     
    O aumento da miséria, o desemprego e o desamparo social inflamaram as críticas em manifestações públicas no espaço urbano. Dessa vez, porém, os manifestantes eram os jovens filhos da classe operária. Os punks foram às ruas encenar a estética da miséria e cobrar direitos, mas não pela resistência pacífica, como faziam os hippies. Para os punks, o discurso da paz e do amor não servia para acalmar a violência e a opressão do Estado. Para se defender, era preciso reagir. Contra a violência institucional, a resistência seria também violenta. A mídia e as instituições passaram a construir uma imagem distorcida do punk, associado desde então à baderna e à violência gratuita. Mas exemplos do caráter político e crítico do punk podem ser observados desde seus primórdios. Numa provocação ao hino britânico God save the queen, a banda Sex Pistols lançou, em 1977, uma música com o mesmo título. Enquanto a Inglaterra celebrava os 25 anos de coroação de Elizabeth II, eles cantavam “Deus salve a rainha/ Seu regime fascista/ Fez de você um idiota/ Bomba H em potencial” e “Quando não há futuro/ Como pode haver pecado/ Nós somos as flores/ Na lixeira”. 
     
    A letra é o retrato fiel de uma condição interna trágica do punk, associada ao caos social. O punk carrega no corpo e nos trajes os signos da tristeza não acomodada, transformada em indignação, ironia e revolta. Cabelo moicano, calças justas, jaquetas e camisetas puídas, enfeitados com patches, acessórios como rebites e alfinetes. Os detalhes que compõem a figura do punk o mostram como um ser maltratado, porém altivo. Parecem saídos de um mundo obscuro e temido que, para as pessoas comuns, emerge de modo inesperado e agressivo na superfície. A representação física e simbólica do punk remete a lixo, podridão e carência, em contraste intencional com o mundo burguês, que é alegre, colorido, higiênico, perfumado, da fartura. O punk é a face oculta da mesma moeda, o dejeto da sociedade de consumo. Quando da adesão ao anarquismo, as roupas pretas aparecem com mais frequência, assim como a utilização das máscaras nos protestos de rua. 
     
    O fato de recusarem vínculos partidários ou doutrinários também facilitou a discriminação dos punks como simples baderneiros. A política, para o punk, é comunicada por uma antiarte, inscrita em músicas, poemas e imprensa próprios. Sua cultura de resistência se expressa em modos de vida, costumes e experiências compartilhadas. Os punks refazem comportamentos sociais ao assumirem gestos ásperos e desdém em relação às maneiras burguesas, ao encararem alguém com raiva ou ironia, cuspir e soltar gases em público. Essas “atitudes” estabelecem uma identidade de grupo e reforçam a firmeza de conduta no que toca ao contato mínimo com o capitalismo e com a cultura que lhe dá sustentação. Se o alcance deste objetivo é quase impossível, os punks estabeleceram para si naquele momento formas de sobrevivência alternativas, não mediadas pelo lucro e pela exploração do trabalho de outra pessoa. Práticas que se tornaram dominantes entre os punks a partir dos anos 1980, quando deram surgimento a comunidades próprias, conhecidas como squatts [ver RHBN n. 95].  
     
    O que sustenta a cultura punk, individualmente ou em comunidades, é a filosofia do “do it yourself”, isto é, faça você mesmo. A autossuficiência é necessária para a autonomia de reger a própria vida sem se render ao sistema, política ou economicamente. Do ponto de vista do consumo, o “do it yourself” envolve a rejeição das próprias mercadorias. Na produção artesanal, os agentes evitam desperdícios e falsos desejos de consumo, de forma que o produto final deixa de ser uma mercadoria e adquire uma razão de existir para os envolvidos no processo. O objetivo desse consumo é a necessidade material, estética ou política, e seu destino é o uso imediato, não o lucro nem a acumulação.
     
    No decorrer da década de 1980, a rebeldia punk sofreu um desgaste ao ser apropriada pelo mercado cultural: massificado, o estilo passou a ser utilizado pela classe média. Surgiram os chamados “punks de boutique”, consumindo roupas e acessórios identificados com a estética, mas não comprometidos com a atitude punk. Esse movimento foi contido musicalmente pela reação punk no hardcore – o núcleo duro, mais pesado e radical – e politicamente pela adesão à ideologia anarquista, em suas diferentes manifestações, com inclinação tanto para o comunismo como para o individualismo, além das vertentes ecológicas, voltadas para a proteção dos animais, das plantas e em defesa do veganismo. Nos anos 1990, espalharam-se as ocupações e os coletivos com formas próprias e autogestionadas de produzir e viver. 
     
    As grandes manifestações nas ruas brasileiras em 2013 mostram que o punk continua a provocar impacto, preservando suas características essenciais como signo explosivo de contestação da ordem. O surgimento dos black blocs tem como marco os  violentos protestos públicos ocorridos em Seattle, durante reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, com participação dos anarquistas e radicais. A inspiração para os blocs veio, entretanto, dos chamados Autônomos Europeus, que nas décadas anteriores estabeleceram estratégias próprias de protesto, não necessariamente anarquistas. Na América, mais precisamente em Chiapas, no sul do México, sua aparição se fez notar na guerrilha de 1994. Quando a tática Black Bloc se dissemina pelos Estados Unidos, entre as décadas de 1980 e 1990, encontra a simpatia dos punk hardcore. Os atuais blocs parecem buscar uma revitalização dessas propostas ativistas pautadas na busca de autonomia, portanto, na recusa do reformismo e da obediência civil.
     
    A atual divisão dos punks em facções dá a impressão de que se perderam de vista a origem e a trajetória do punk. Sobressaem valores individualistas e conservadores de cunho nacionalista, e há quem associe erroneamente os black blocs com o fascismo, devido à violência empregada nos protestos. Para alguns, sobretudo para os segmentos dos punks ativistas dos anos 1990, o conteúdo crítico da proposta parece esvaziado diante do aparecimento de novos punks com inclinações menos militantes. Mas o fato de existirem heranças vivas de um movimento iniciado 40 anos atrás é um indício da força daqueles ideais. Ao que parece, enquanto houver motivos de descontentamento com a sociedade vigente, haverá combustível para o ressurgimento do punk. 
     
    Ivone Gallo é pesquisadora do Centro de Pesquisas em Utopias (IEL-Unicamp) e autora do artigo “Por uma Historiografia do Punk” (Revista Projeto História, ago./dez. 2010).
     
    Saiba Mais
     
    BIVAR, A. O que é punk? Col. Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1982.
    McNEILL, L. & McGAIN, G. Mate-me, por favor: uma história sem censura do punk. Porto Alegre: L&PM, 1997.
    SOUSA, Rafael Lopes de. Punk: Cultura e Protesto: as mutações ideológicas de uma comunidade juvenil subversiva. São Paulo 1983-1994. São Paulo: Editora Pulsar, 2002.
     
    Filme
     
    Botinada: A Origem do Punk no Brasil (Gastão Moreira, 2006)