O aumento da oferta de quadrinhos nas livrarias das grandes cidades brasileiras e o interesse do MEC pelo segmento – a ponto de selecionar, nos últimos anos, obras para o Programa Nacional Biblioteca da Escola – provam que o Brasil tem reconhecido sua importância cultural. Mas bem aqui ao lado, na Argentina, as HQs têm merecido mais atenção e reverência há bastante tempo, o que fez com que nossos vizinhos desenvolvessem uma escola autoral do gênero como ainda não vimos em nosso país. O recém-lançado livro Bienvenido: um passeio pelos quadrinhos argentinos, de Paulo Ramos, mostra que são produzidos quadrinhos argentinos de alta qualidade desde o início do século XX.
Morando na Argentina há cerca de três anos, o desenhista gaúcho Adão Iturrusgarai – que publica tiras como Aline e Rocky & Hudson na prestigiada revista portenha Fierro – explicou a Ramos qual é, em sua opinião, a maior diferença entre o Brasil e nosso vizinho: “Lá eles leem mais, mas têm uma economia mais complicada e menos habitantes. O Brasil tem uma economia mais sólida, mas se lê menos por aqui. O que salva o Brasil é a nossa população. Muita gente, muito consumo”.
Iturrusgarai se refere a um mercado brasileiro que começou a massificar os quadrinhos em 1934, quando o editor Adolfo Aizen lançou o Suplemento Juvenil como encarte do jornal A Nação. A partir daí, as séries de sucesso no Brasil passaram a compilar principalmente histórias americanas, embora dessem espaço a artistas brasileiros que, na maioria das vezes, produziam séries inspiradas em modelos yankees. Pelo que se lê em Bienvenido, essa relação era praticamente inversa no país vizinho, e permanece assim até hoje.
De acordo com a pesquisadora e professora Sonia Luyten, as HQs platinas se caracterizam por “um forte sentimento nacional, tanto dos produtores como dos leitores em geral”. Mas não é só isso que, para ela, explica por que os quadrinhos argentinos representam uma espécie de vanguarda: “Sempre houve muitos contatos dos argentinos com países europeus, como Itália e Espanha. Assim, surgiu uma preferência automática por produções desses países, em detrimento da influência norte-americana”. Ou seja, se o modelo americano, mais comercial, tem recebido maior reconhecimento no Brasil, foram os quadrinhos de vanguarda europeus que mais influenciaram a cena argentina, fomentando trabalhos mais arrojados.
Com as crises econômicas que vieram a reboque do governo de Fernando de la Rúa (1999-2001), os editores portenhos não tiveram dúvida: praticamente desistiram de publicar quadrinhos estrangeiros com regularidade e se concentraram no material nacional. Até hoje o mercado argentino para gêneros mundialmente populares, como super-heróis e mangá, é abastecido com revistas espanholas de editoras como a Panini e a Planeta de Agostini.
Aqui, a única publicação brasileira que teve grande êxito valendo-se do trabalho de artistas dos cartuns e de forte engajamento político no século XX foi O Pasquim, nos anos 1960 e 1970, enquanto diversas publicações argentinas seguiram – e seguem – essa tendência. Segundo Paulo Ramos, o chefe de redação da Fierro, Lautaro Ortiz, atribui a boa aceitação da revista no país “ao perfil do leitor, uma pessoa mais intelectualizada e afinada com a esquerda no espectro político e que tende a gostar de quadrinhos”. Não foi à toa que, nos anos de chumbo de Jorge Rafael Videla (1976-1981), um dos maiores roteiristas da história do país, Hector Oesterheld, tivesse sido detido pela polícia da repressão no mesmo período em que suas quatro filhas também foram presas. O escritor trabalhava na sua série El Eternauta, que mostrava uma Argentina no futuro, governada por uma ditadura. Até hoje não se sabe o paradeiro da família Oesterheld.
Se a politização se deu de forma contundente nos quadrinhos argentinos, o mesmo pode ser dito sobre o uso de novas formas de expressão visual. Artistas como Alberto Breccia (1919-1993) introduziram em sua arte técnicas de pintura nos anos 1960 e 1970 que só se popularizariam nos Estados Unidos nos anos 1980, com nomes como Bill Sienkiewicz e Dave McKean. Por tudo isso, os argentinos já conquistavam, muito antes dos brasileiros, um espaço nobre no mercado de quadrinhos mundial. Nomes como Jose Muñoz, Carlos Trillo, Horacio Altuna e Solano Lopez são reconhecidos em todo o planeta como grandes mestres há várias décadas.
Heitor Pitombo é jornalista e autor de Entes Perpétuos, o universo onírico de Neil Gaiman (Kalaco, 2010).
Saiba Mais - Bibliografia
JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis – A Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos Quadrinhos, 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LUYTEN, Sonia Maria Bibe (org.). Histórias em Quadrinhos – Leitura Crítica. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
RAMOS, Paulo. Bienvenido, um passeio pelos quadrinhos argentinos. Campinas: Zarabatana Books, 2010.
Quadrinhos - HQs hermanas
Heitor Pitombo