Quadrinhos - Fardado e antenado

Marcio Malta

  • O famoso Recruta Zero nem sempre vestiu farda de militar. Criação do desenhista norte-americano Mort Walker, o personagem veio à tona em 1951 sob o nome de Beetle Bailey e como estudante universitário. Mas o número de jornais que compravam a tirinha estava em franca decadência, e o autor resolveu mudar a história: o jovem Bailey alistou-se no Exército dos Estados Unidos e virou recruta. Zero foi criado no ambiente de um conflito armado, a Guerra da Coreia (1950-1953) – que resultou na divisão daquele país até os dias de hoje.
     
    Como o nome sugere, o personagem é uma espécie de anti-herói. Em uma das sociedades mais bélicas do mundo, fazendo parte de uma corporação que preza pela imagem de ordem e eficiência, o Recruta Zero não está nem aí para os treinamentos e para a rígida hierarquia do quartel Swamp [“pântano” em inglês]. Suas marcas, ao contrário, são a imensa preguiça e a insubordinação, que acabaram tendo consequências no mundo real: o personagem foi banido de uma das principais publicações do Exército norte-americano, o jornal Star and Strips. Mas o estrago já estava feito: o sucesso dos quadrinhos era retumbante, inclusive entre os militares.
     
    No meio da efervescência política e cultural da década de 1970, a tirinha foi acusada de machismo por colocar a personagem da secretária Dona Tetê em posição de objeto. O movimento feminista lançou severas críticas ao autor, identificando nas histórias situações de assédio sexual. Nos anos seguintes, Mort Walker fez com que a personagem ficasse mais emancipada e menos servil.
     
    Em outra ocasião, o autor do Recruta Zero estava em uma festa quando foi interpelado por integrantes do movimento negro, que lhe cobravam um personagem que os representasse. Afinal, grande parte do Exército norte-americano era composta de afrodescendentes. O pedido foi prontamente atendido, com a criação do Tenente Mironga, que ostenta um penteado black power e, em algumas aparições, reflete sobre as condições do negro naquela sociedade. 
     
    Na produção referente ao período da Guerra Fria, as tirinhas do Recruta Zero despertam interesse por mostrar em perspectiva comparativa como seria o cotidiano dos soldados russos. De maneira politizada e relativista, uma das tiras chega a apontar a falsa concepção de liberdade nos Estados Unidos, onde os cidadãos vivem sob forte controle e vigilância.
     
    O discurso antibelicista tem como principal representante o personagem Platão. Com nome de filósofo, este soldado reflexivo e intelectualizado tem por hábito questionar os sentidos da guerra e mesmo as ordens de seus superiores. Em uma das tiras, Zero interpela seu colega sobre a motivação para se alistar no Exército. Platão responde que no início acreditava poder derrotar o sistema estando em seu interior, mas chegou à conclusão de que o sistema é autossuficiente para derrotar a si mesmo.
     
    Questionamentos sobre os horrores da guerra são feitos a todo momento pelos integrantes do quartel. O próprio Zero pergunta ao general Tainha se não seria melhor, em vez de se preparar para a guerra, dedicar os treinos à construção da paz. Este tipo de indagação parece espelhar a concepção de vida do próprio Mort Walker, que lutou na Segunda Guerra Mundial no sul da Itália e chegou a ocupar o posto de primeiro-tenente do Exército norte-americano, conhecendo de perto o sofrimento e a degradação causados pelos conflitos bélicos. 
     
    As histórias passadas no quartel Swamp também fizeram sucesso no Brasil. E, recentemente, seus leitores ganharam uma maneira de revisitar essa produção, com a publicação de dois volumes do Livro de Ouro do Recruta Zero. São centenas de tirinhas acompanhadas de textos que narram o desenvolvimento dos personagens e como era a produção da equipe de Walker. Hoje, com mais de 90 anos, o desenhista de traço simples e preciso ainda supervisiona a tira, que é publicada em mais de mil jornais em todo o mundo, mas deixou Zero sob a batuta de um de seus filhos, Gregory. 
     
    Reler as tiras do sexagenário recruta é um exercício divertido, principalmente pelas tiradas iconoclastas de seus personagens, e também pedagógico, pois ajuda a compreender diversas épocas por meio do humor que corre solto naquele quartel anárquico.
     
    Marcio Malta é professor da Universidade Federal Fluminense, cientista político, cartunista e autor de Diretas Jaz: o cartunista Henfil e a redemocratização através das cartas da Mãe (Muiraquitã, 2012).
     
    Saiba mais
     
    WALKER, Mort. O Livro de Ouro do Recruta Zero. São Paulo: Ediouro, 2014.