Quadrinhos - Nos braços de Peri

Moacy Cirne

  • É possível que “O guarani” seja a obra brasileira mais adaptada para os quadrinhos. Desde os anos 1930, foram feitas várias adaptações. Dentre elas, destacam-se aqui duas: a de André LeBlanc (Ebal), de 1950, e a de Ivan Jaf & Luiz Gê (Ática), de 2009.

    A de LeBlanc e a de Jaf & Luiz Gê investem mais na romantização do indigenismo. Sem dúvida, LeBlanc é mais literário, mais clássico. Jaf & Luiz Gê são mais cinematográficos, mais perfeccionistas em sua elaboração formal. Com relação ao estilo exuberante de José de Alencar, há respostas ambíguas nos dois desenhistas: LeBlanc é mais contido, usando menos elementos gráficos, é mais “ilustrador”. Luiz Gê é mais contundente em termos gráficos, há mais funcionalidade no desencadeamento de suas imagens, que se completam de modo bastante harmônico no conjunto da obra.

    Há que ver, ainda, o momento histórico das duas obras. Na época de LeBlanc (anos 1940 e 1950, com larga experiência no exterior, na equipe de Will Eisner, o conceituado criador do “Spirit”), as histórias em quadrinhos eram consideradas por sociólogos, pedagogos e literatos  uma “arte inferior”, uma “manifestação capaz de provocar preguiça mental”, um “discurso alienado”, e assim por diante. Com exceção da defesa de cunho nacionalista feita por Gilberto Freyre na revista O Cruzeiro, entre 1948 e 1951, não se considerava nem mesmo a possível interação entre dois mundos de forma instigante: de um lado, a literatura; do outro, os quadrinhos. E os quadrinhos, mesmo no Brasil, já eram uma realidade estética indiscutível. De certo modo, já há uma mudança significativa hoje: a percepção de sua importância estética e cultural tem avançado concretamente.

    Uma leitura comparativa revela ainda questões da visão de um Brasil dominador. A edição de Jaf & Luiz Gê (lembremos que o segundo é um nome significativo do humor gráfico paulistano desde 1972, quando lançou, com Chico Caruso, Angeli, Laerte e outros nomes, a publicação alternativa Balão) leva em conta um problema anterior: em Alencar, o índio não seria um “símbolo de alma branca”? Não seria o seu “índio” um elemento a serviço do português colonizador?

    Essas preocupações não estão presentes em LeBlanc. Sua narrativa gira em torno do romance: forma, ação e estrutura. A história de Peri e Ceci – romântica e indigenista, ingênua ou não – foi uma referência romântica para jovens leitores durante décadas. Neste particular, o seu final, com o índio devidamente cristianizado, é marcante:

    “– Tu viverás!
    Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
    – Sim... murmurou ela; viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!...
    [...]
    O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
    Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.
    A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
    E sumiu-se no horizonte...”

    Em LeBlanc, toda a cena se resume a dois enquadramentos, depois do trabalhado grafismo que molda a fúria da enchente do rio no relato de Alencar. Potencializando a estrutura romanesca do livro, o diálogo de Peri com Ceci, sobre a palmeira em direção ao mar aberto, abre-se para a possibilidade de um final diferente – sem a presença divina – em seu projeto temático: “Tu viverás!”, afirma o índio. E Ceci complementa: “Sim, Peri, viveremos!”. Em Jaf & Luiz Gê repete-se o mesmo diálogo, sem maiores rupturas textuais, mas com uma diferença: maior é o número de enquadramentos, que, coloridos, são graficamente mais burilados. E com um conteúdo a mais, sugerido anteriormente por LeBlanc, que não se encontra em Alencar: o beijo entre os dois. Um simples beijo, é verdade, mas um beijo que revela um outro olhar para o sensualismo compreendido pela obra.

    De qualquer modo, se hoje a quadrinização de Jaf & Luiz Gê é admirada, exatamente quando a febre das adaptações tomou conta do nosso país – o que é louvável –, é porque, quase 50 anos antes, existiu um LeBlanc, com “O guarani” e outras obras.


    MOACY CIRNE é professor aposentado da Universidade Federal Fluminense e autor de História e crítica dos quadrinhos brasileiros (Funarte/ Europa, 1990), laureado com La Palma Real, de Cuba.

    “A verdade é que, em si mesmas, as histórias em quadrinhos são uma forma nova de expressão contra a qual seria tão quixotesco nos levantarmos como contra o rádio, o cinema falado ou a televisão. ... A essa tendência da época [que favorece as ‘dramatizações sintéticas, breves, incisivas’], a história de quadrinhos corresponde admiravelmente. É um meio atualíssimo de expressão cuja substãncia deve ser, quanto possível, purificada de excessos, vulgaridade ou abusos ... mas cuja forma ou cuja técnica, em vez de repelida, deve ser utilizada em escala cada dia maior pelo escritor, pelo artista, pelo educador desejoso de influência sobre a massa”.

    Gilberto Freyre, em 9 de junho de 1951, na revista O Cruzeiro.