Anos antes da criação daquele que é considerado o primeiro personagem de quadrinhos da história – o Yellow Kid, de Richard Outcault, que chegou aos jornais norte-americanos em 1895 –, já havia gente no Brasil produzindo aquilo que viria a ser chamado de nona arte. Angelo Agostini (1843-1910) é mais conhecido como o fundador da Revista Illustrada (1876) e jornalista defensor da cidadania e do Brasil, tendo participado ativamente da campanha abolicionista. Mas esse imigrante italiano também é fundamental para a história das HQs em nosso país.
Na revista A vida fluminense, em 30 de janeiro de 1869, Agostini lançou uma saga intitulada “As aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma viagem à corte”. Foi a primeira história em quadrinhos seriada lançada no Brasil, e por isso a data foi escolhida para celebrar o Dia do Quadrinho Nacional. Pelo mesmo motivo, Angelo Agostini dá nome ao troféu da Associação de Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo, que premia anualmente os melhores artistas e trabalhos do gênero.
O traço realista e o emprego do claro-escuro caracterizam seu estilo. O aprimoramento estético atinge o clímax nos belos e inovadores quadrinhos, claramente acadêmicos, de sua história seguinte, “As aventuras de Zé Caipora” (1883), considerada de importância internacional.
O pioneirismo do artista se fez valer com Nhô-Quim, um personagem que foi apresentado como um caipira rico, ingênuo, apaixonado por uma moça pobre – razão pela qual sua família o mandou para a Corte. O autor tinha a intenção de criticar, de forma irreverente, os problemas urbanos, os modismos e os costumes sociais e políticos da época. Seus alvos iam do trânsito e da higiene pública à ganância dos comerciantes, que desde aquela época já queriam impor a última moda aos fregueses. Da insistência dos vendedores de ações e bilhetes de loteria, que se multiplicavam pelas ruas, aos imigrantes, que trabalhavam como engraxates e músicos.
Numa de suas histórias, Nhô-Quim vai ao famoso restaurante do Hotel des Princes e, por não conseguir traduzir o menu em francês, resolve pedir um prato após outro, e acaba sentindo uma indisposição. Orientado pelo garçom, ele sobe as escadas em busca do sanitário. Entra por engano num quarto de hóspedes, se alivia em um urinol, e ao deitar na cama, acaba pegando no sono. À meia-noite, uma artista francesa, que está mais para uma prostituta de luxo, encontra-o deitado no lugar que era seu. Funcionários, hóspedes e a criadagem do hotel, alertados pelo seu grito horrorizado, vão socorrê-la, suspeitando que se tratasse de um assalto. O caipira reage jogando o conteúdo do urinol em cima daqueles que o ameaçavam. Eles recuam, se limpam e retornam acompanhados de alguns guardas, que acabam prendendo quem julgavam ser um meliante. Ao examinar a carteira de Nhô-Quim recheada de cédulas, a moça, cheia de segundas intenções, o abraça, reconhecendo-o como um amigo e um perfeito cavalheiro. Por fim, ela retira a queixa e inocenta o herói.
Peripécias como essa foram uma das marcas do caipira. A partir do capítulo dez, suas aventuras passariam a ser desenhadas por outro artista da revista – Candido A. de Faria –, que tinha um estilo semelhante ao de Agostini.
Mas o que é flagrante mesmo nas histórias de Angelo Agostini é a crítica dos costumes e a exploração humorística do choque cultural entre o homem do campo e o da cidade. Isso fica ainda mais evidente nas cenas em que Nhô-Quim se depara com coisas que ele nunca vira no seu ambiente rural de origem, como mictórios, espelhos ou sorvetes. Mais do que um trabalho pioneiro na história dos quadrinhos, a saga de Agostini – até por ter sido desenhada num estilo que é mais realista do que caricatural – pode ser considerada um material fundamental para quem quer investigar a vida do país em meados do século XIX e a visão de um desenhista da Corte sobre o estilo de vida dos seus contemporâneos.
Athos Eichler Cardoso é editor dos álbuns As aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora – As primeiras HQs brasileiras, de Angelo Agostini (Senado Federal, 2002) e Juquinha, Giby e Miss Shocking, de J. Carlos (Senado Federal, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
CIRNE, Moacy. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: Funarte,1990.
LIMA, Herman. História da Caricatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
MONTEIRO LOBATO. Idéias de Jeca Tatu. São Paulo: Brasiliense, 1959.
Quadrinhos - Pioneiro nas histórias seriadas
Athos Eichler Cardoso