Os jornais brasileiros começaram a ficar mais engraçados já na primeira metade do século XIX. Nesse período, apesar de a imprensa no Brasil ter sido permitida a partir de 1808, as sátiras jornalísticas surgiram de forma clandestina, nas poucas prensas existentes na Corte e em algumas províncias, com os autores usando pseudônimos. Há quem diga que a litografia A campainha e o cujo, de 1837, foi a primeira caricatura brasileira publicada no país. No entanto, uma xilogravura anônima de um homem corcunda com uma cabeça de burro, de 1831, desmente essa afirmativa. Esta foi uma das ilustrações estampadas nas páginas do jornal satírico O Carcundão. Editada no Recife, a publicação é a mais antiga obra de humor gráfico brasileira.
Para quem militava no humor, o quadro político da época era inspirador. A popularidade do imperador D. Pedro I (1798-1834) já não era a mesma de outras épocas. Tanto que, em abril de 1831, o monarca resolveu abdicar da coroa em favor de seu jovem rebento, Pedro de Alcântara. Ele vinha sendo pressionado não só pela oposição que a Câmara fazia ao seu governo, mas também pelo processo sucessório em Portugal – que o obrigaria a entrar em conflito com o irmão, D. Miguel, para que sua filha Maria pudesse governar. O Partido Restaurador defendia a continuidade do regime centralizador por meio dos jornais O Carijó, O Caramuru e O Sete de Abril, mas enfrentava a resistência dos liberais que, no mesmo mês, imprimiram na Tipografia Fidedigna, no Recife, o primeiro exemplar de O Carcundão.
Autodenominando-se um “alfarrábio velho de 80 réis”, o jornal apresentava na capa de seu terceiro número (maio de 1831), a ilustração de um homem corcunda – apelido que era usado pelos liberais contra os restauradores – com uma cabeça de asno tentando impedir a queda de uma coluna. Abaixo da imagem, lia-se: “Apressemo-nos, o tempo é breve, a existência do Trono e Altar acha-se ameaçada por esses anarquistas niveladores”. Na contracapa do periódico, o mesmo corcunda apareceu novamente, sob uma nuvem negra que soltava raios, soterrado pela coluna quebrada que agora trazia a inscrição em latim “Non plus ultra” – inscrição que havia nos mapas marítimos para indicar um ponto a partir do qual não se podia mais prosseguir.
A ilustração de O Carcundão, assim como o próprio nome do jornal, satirizava os restauradores e a Sociedade Colunas do Trono, que tinha caráter nativista e desejava a volta do absolutismo com o qual o ex-governante era identificado. Nesse momento, o sentimento contra o primeiro imperador do Brasil era muito forte. Isso se devia, em grande parte, às sanções promovidas pela Corte portuguesa e pelo próprio D. Pedro I, como retaliação à Revolução Pernambucana (1817) e à Confederação do Equador (1824). Não se sabe quem fez as ilustrações e escreveu os textos do jornal. Afinal, naquele momento politicamente conturbado, o anonimato era uma garantia de vida. Mas a semelhança entre os textos de O Carcundão e de outro jornal de crítica aos costumes publicado em maio do ano seguinte na mesma cidade, O Carapuceiro, leva a crer que o autor poderia ter sido o padre Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852). O Carapuceiro também trazia uma ilustração satírica em seu frontispício.
O contista, crítico de arte e memorialista Herman Lima (1897-1981), autor da primeira grande obra sobre o humor gráfico brasileiro, História da Caricatura no Brasil (1963), prefere desconsiderar a publicação de O Carcundão, dizendo tratar-se apenas da “imagem de um burro corcunda derrubando a coices uma coluna grega”. Para ele, nenhuma obra do gênero apareceu antes de A campainha e o cujo, e Herman Lima credita sua autoria a Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879).
Mas as evidências confirmam que Lima estava equivocado. Dois dos três exemplares do Carcundão estão preservados no acervo da Biblioteca Nacional e confirmam o pioneirismo da publicação, que foi identificada em 1908 pelo historiador Alfredo de Carvalho (1870-1916) como sendo a primeira onde aparece um desenho de humor no Brasil. Independentemente da polêmica, está muito claro que, desde os primórdios da imprensa no país, o trabalho dos cartunistas sempre esteve identificado com a crítica política.
LAILSON DE HOLANDA CAVALCANTI É CARTUNISTA E AUTOR DO LIVRO HISTORIA DEL HUMOR GRÁFICO EN EL BRASIL (UNIVERSIDAD DE ALCALÁ DE HENARES, ESPANHA, 2005).
Saiba Mais - Bibliografia
FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e ofícios, 1999.
LEMOS, Renato (org.). Uma História do Brasil através da caricatura: 1840-2001. Rio de Janeiro: Bom texto/ Letras & Expressões, 2001.
LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
SILVA, Leonardo Dantas. A imprensa e a abolição. Recife: Massangana, 1988.
Quadrinhos - Segredos de um asno
Lailson de Holanda Cavalcanti