Nada de super-heróis, vampiros ou monstros; os quadrinhos brasileiros de terror buscaram inspiração no produto nacional: no nosso folclore, nas lendas regionais e na religiosidade popular. Esse gênero fez sucesso entre os leitores e foi um dos poucos tipos de quadrinhos em que os autores nacionais conseguiram produzir obras com algum êxito comercial.
Exemplos dessa “brasilidade” podem ser encontrados em histórias curtas produzidas pelo roteirista Ota (Otacílio Barros) em parceria com o desenhista Julio Shimamoto. Os dois começaram a trabalhar juntos na Spektro, gibi de terror publicado de 1977 a 1983. Na época, Ota já havia sido editor da revista Mad e Shimamoto era um desenhista veterano, com experiência como ilustrador numa agência de publicidade e com passagens por outras revistas de terror.
Aqui vemos reproduzida a primeira página da história “Um caso verídico!”, publicada originalmente na Spektro. Duas amigas passavam um domingo numa praia quando uma delas, chamada Marlene, encontra uma imagem de Iemanjá. Luiza, a outra personagem, aconselha a amiga a não ficar com a pequena estátua porque isso irritaria o orixá e traria azar. Marlene, no entanto, teima e leva o objeto para casa.
Pouco depois, uma série de infortúnios acomete Marlene e seu marido, Severino. Ela sofre um acidente de carro; o muro de sua casa cai e a mãe dela morre. Severino, por sua vez, perde o emprego após ser injustamente acusado de roubar dinheiro da empresa onde trabalhava. Para completar, uma tuberculose ameaça a vida da protagonista.
Antes que o pior aconteça, Marlene aceita a sugestão de Luiza e pede ajuda a um pai de santo. A recomendação dele é que ela devolva a imagem de Iemanjá. Logo, uma onda de boa sorte substitui a maré de azar. Ela é curada milagrosamente da tuberculose e seu marido recupera o emprego, com direito a indenização.
Os quadrinhos de terror brasileiros podem ser ótima fonte de estudos sobre a nossa sociedade. A tradição dos gibis desse gênero começou no país em 1959, quando um grupo de pequenas e médias editoras paulistanas, como La Selva, Continental e Outubro, passou a investir na produção local. Até então, as publicações eram compostas de traduções de quadrinhos criados nos Estados Unidos. No início, as criações desse gênero ainda eram calcadas nos modelos norte-americanos, o que era encorajado pelos editores. Mas, aos poucos, isso começou a mudar. Os produtos de origem americana entraram em declínio, ao mesmo tempo em que a demanda brasileira não parava de crescer, o que resultou em um estímulo à produção nacional.
A decadência desse mercado nos EUA ocorreu por causa do Comics Code Authority, uma autocensura criada em 1955 por um grupo de editoras dos Estados Unidos. Tratava-se de um selo estampado na capa atestando que o conteúdo daquele gibi era “inofensivo” e “adequado” para os jovens leitores. O Comics Code inviabilizou as histórias de terror nos Estados Unidos, o que estimulou a produção de quadrinhos autenticamente brasileiros.
Aqui, os quadrinhos também foram alvo de preconceito, tanto por parte da direita – que os considerava nocivos, acusando-os de estimular a violência e afastar os jovens dos estudos – quanto por parte da esquerda – que os acusava de serem veículo de propaganda do imperialismo norte-americano. Na década de 1960, um grupo formado pelas maiores editoras brasileiras da época (Empresa Gráfica O Cruzeiro; Editora Abril; Ebal e RGE) resolveu imitar o Comics Code e criou o Código de Ética dos Quadrinhos.
Enquanto o Comics Code foi adotado por quase todas as editoras norte-americanas, o Código de Ética foi utilizado por poucas editoras, e nenhuma das especializadas em terror. Além disso, o “nosso” selo era menos rígido quanto aos temas ligados ao sobrenatural. Enquanto o Comics Code proibia temas como lobisomens, vampiros, mortos-vivos e até o uso das palavras “terror” e “horror” nos títulos das revistas, o Código de Ética era mais vago e subjetivo. Desaconselhava apenas o uso de “violência excessiva”, expressão genérica, sujeita às mais variadas interpretações.
Nem mesmo o regime militar, que exerceu uma forte censura sobre todos os meios de comunicação em nosso país, conseguiu impedir a produção nacional de revistas em quadrinhos de terror. Um dos fatores que explicam essa relativa tolerância, no período da ditadura, com essa produção é que a maioria dessas histórias não tratava diretamente de questões políticas.
A perseguição por aqui foi bem menor do que a ocorrida nos Estados Unidos, devido à diferença cultural e religiosa entre os dois países. As histórias de terror muitas vezes envolvem questões ligadas a crenças em uma vida após a morte e na intervenção de entidades sobrenaturais no cotidiano. Para um país de maioria protestante, como é o caso dos Estados Unidos, o sobrenatural é quase sempre obra do Diabo, exceto na forma de milagres divinos. Além disso, a ideia de comunicação com os mortos é totalmente negada pelas igrejas protestantes.
No Brasil, a doutrina espírita fundada no século XIX pelo francês Alan Kardec conquistou significativo número de adeptos. As religiões afro-brasileiras e até o catolicismo, com seu “panteão” de santos, também contribuíram para a maior tolerância do público brasileiro em relação a esses temas. Os seguidores do kardecismo, das religiões afro-brasileiras e mesmo do catolicismo aceitam a ideia de que nem todas as entidades sobrenaturais seriam maléficas. Algumas, pelo contrário, seriam consideradas benéficas (“espíritos de luz”; “orixás”; “santos”). É justamente o poder de um orixá que deixa a protagonista com tuberculose para depois curá-la.
TÚLIO VILELA É COAUTOR DE COMO USAR AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA SALA DE AULA (CONTEXTO, 2004), QUADRINHOS NA EDUCAÇÃO (CONTEXTO, 2009) E MUITO ALÉM DOS QUADRINHOS (DEVIR, 2009).
Quadrinhos - Terror tupiniquim
Túlio Vilela